quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Prólogo


Havia ainda um filete de luz esmorecendo devagar, um pouco arrepiado pelos rumores vindos na respiração das rachaduras da construção condenada. Anunciavam noite sem lua. Depois não havia mais nada. A luz apagou anunciando a proximidade da hora do nascimento. A luz tem de morrer antes dos nascimentos para não cegar quem vem chegando. Suspendem o ar, estendem o suspense na janela para que fique reservado o momento íntimo da passagem, é hora de se lavar, de aprontar-se para receber a novidade que iluminará tudo diferente.

A gravidade do momento punha o indicador sobre os lábios pedindo silêncio, espaço à respiração de quem reúne forças para cortar a corda. Pausa. Vacila? Não, espera resignada acomodar-se a ciência da inexorabilidade do gesto prestes a ser, e no entanto, todos depois disso voltariam a ser, mais nada. Absoluta, a certeza aperta-lhe o braço lembrando de que é hora, o corte necessário tem de ser fundo para que venham tempos limpos do mofo acumulado com a umidade salina das lágrimas suadas.

Olhos cerrados, corpo retesado de conhecer o significado que o gesto carrega, era chegada a hora, avistava já o olho do furacão e ao ser alcançada não resistiu, procurou o lugar menos doído, conhecido de outras tempestades. Acomodou-se, e se deixou arrastar pelo momento, cuja urgência de vida fazia-se maior que o medo de abandonar o sonho morto. Estivera ali velando e chorando por ele desde quando, há tempos atrás, avisaram da contagem regressiva dos dias. Quando é assim, o aviso da morte antecede ao do nascimento, sem que essa ordem tenha nada que ver com um possível consolo, nada consola das despedidas abominadas, a ordem do aviso obedece as leis da natureza, só isso.

Partira. Olhos vazios, forças rasgadas, a certeza lhe dando a mão direita, a tristeza a esquerda, não havia espaço para mais nada além do susto diante da própria coragem de ter olhado nos olhos da verdade feia que amparava a decisão de partir a corda.

Perder para a morte não é novidade, o trágico do momento marca mais uma passagem, como tem de ser. Vai-se o sonho, fica o amor guardado nos alfarrábios a conter as histórias reais e as inventadas. O recomeço ficará a critério da continuidade inelutável imposta pela passagem comprida e eterna dos dias distribuídos nos pacotes semanais. O luto enche a escuridão da noite com sonhos confusos e tristes, as manhãs não querem acordar secas e chamam as lágrimas para umedecer o chão que virará tarde lentamente.

Isso também passará, e depois que a tempestade se for, voltará a ser terra fértil o que agora é fadiga exaurida. Abrir-se-ão portas e janelas e precipitar-se-á luz sobre o novo caminho de nuances conhecidas, haverá novo ânimo, será sentido afinal o propósito do movimento, como se a repetição do ato de cortar e sarar daquilo que não faz mais sentido servissem de prólogo para o que ainda será vivido.

- Elis Barbosa

4 comentários:

  1. Para ler ouvindo "Sanar", do Drexler.

    Va a sanar,
    Va a sanar,
    Y va a volver a quebrarse

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  2. Será que você sabe da beleza que é se saber sabido, de modo tão exato? Ilumina o sentido de tudo.

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  3. Belo texto,Elis! O nascimento e a morte comungam do mesmo momento. Texto para ser lido algumas vezes. A primeira leitura dá a sensação de precipitação de sentimentos, sensações, e palavras. Gosto muito do fluxo. Um grande abraço para você e para Roberta. A visita de vocês foi muito importante para mim.

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  4. Elis,
    O meu nome é Elisabete e escrevo no blog Didascália.
    Cheguei por intermédio do blog A Palavra em Fuga e espero ficar. Há palavras que leio e fascinam para lá da compreensão. São estas, suas, também.
    E deixo um obrigada pelo comentário no Didascália.
    Até breve,

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)