quarta-feira, 27 de julho de 2011

Ouvídia

Este texto, ora revisto, foi postado no site Trema Literatura, na coluna quinzenal de Elis Barbosa. 

Fora mais empenhada em manter um consumo mínimo de três nacos de ternura por dia, andava relapsa. Mas há que se pender para a compreensão, e até certa condescendência, sabemos, descuido vira vício de uma ausência para outra. Sabia que não era bom andar assim faminta – a falta da ração diária causava já perdas significativas –  tornava-a dispersa, inquieta, embaçava-lhe o entendimento, fazia-a abrupta.

Sabia da hora, estava atrasada, sem apetite para consumir o recheio do tempo subsequente, caminhava olhando para o chão, tinha saudades da lua, e certeza da perturbação que lhe causaria olhá-la nos olhos, por isso a evitava. Repassando os movimentos feitos naquele dia, constatou mais calma, que todos tinham sido no sentido de uma dieta mais equilibrada, e teve pena de perceber que precisava fazer mais, sempre mais. Manter em dia as quantidades necessárias de amor manifesto em carinho, de compreensão dos olhares trocados, de tempo desdobrado em entendimento dos mistérios guardados nas horas, de descanso nos abraços que cediam o calor essencial que sol nenhum pode render, era cada vez mais raro. A disponibilidade andava fugidia, danada.


Para quem precisa de um mínimo de três nacos de ternura por dia, os minutos são densos e passam multidões pelo buraco de uma hora. Acumulam-se enigmas insondáveis por todos os lados dos interiores, trazendo uma indolência ruim, espécie de fraqueza.  Como um banzo cuja seta negra aponta para uma falta essencial, fica insossa a alma carente. 

Envolta nesses pensamentos, cavando caminhos por onde escoar sua busca, ouviu o circo que estava na cidade, achou gozada a música que levantou seus olhos sorridentes ante as lembranças graciosas que os ouvidos auscultavam. Caminhava pelo canteiro central de uma avenida onde tudo era urbano, mesmo a cidade sendo pequena, carregava todas as palavras ditas até aqui, tentava ordená-las num sentido qualquer, quando o circo de música levantou-lhe suave o queixo para que visse o banquete servido bem ali, no meio da rua.

Sentadas no meio-fio, de frente para o circo, estavam uma velha e uma criança, tinham os ombros encolhidos, o pescoço enterrado entre eles buscando algum abrigo do vento que nunca pára. Olhavam conpenetradas e silênciosas para o mundo de cores musicais ali, do outro lado da rua. Mãos postas sobre o colo era a menina, a velha limitava a distância entre elas com o braço que envolvia a pequena. Ambas pertenciam-se, uma à outra, figuravam como duas flores geradas uma da outra naquele canteiro incerto. O abraço, esse sim era real e quente e substancioso. 

Envolvida naquele colo, ela que vinha tão realísticamente desprevenida, quase incrédula quanto à existência dessas gratuidades amorosas, vê a  menina começar a gesticular apontando para o circo, e falava muito, com mãos também tal qual é das meninas fazerem. Feito bailarinas malucas e muito libertas elas se movimentam muito e pra sempre. Muito atenta ela nota que a menina é ouvida atentamente pelos olhos da velha que a acolhia com amor de vó, cuja descrição não tem como ser transcrita, só sabe do que se trata quem já teve olhos embaçados de velho amoroso sobre si e mais nada.

A menina falava e a velha assentia toda. Será que era do circo que falavam? Será de quê que aquela menina precisava? Seja lá do que for ser ouvida já era tanto.

Agradecida, a esfaimada fartou-se, e renovada continuou seu caminho em direção ao mar, agora disponível, atenta, olhando a lua, derramando-se em precisão de amar mais para viver menos a aridez do resto que fica.
  
- Elis Barbosa 

4 comentários:

  1. ola. tudo blz? estive aqui. interessante. apareça por la. abraços.

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  2. OI. TUDO BLZ? ESTIVE AQUI DANDO UMA OLHADA. MUITO LEGAL. APAREÇA POR LA. ABRAÇOS.

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  3. Permita-me capturar um fragmento seu:

    "Para quem precisa de um mínimo de três nacos de ternura por dia, os minutos são densos e passam multidões pelo buraco de uma hora. Acumulam-se enigmas insondáveis por todos os lados dos interiores, trazendo uma indolência ruim, espécie de fraqueza. Como um banzo cuja seta negra aponta para uma falta essencial, fica insossa a alma carente."

    Não sei se isso acontece com você. Mas, quando empilho as palavras no papel, sinto que minha alma se esvazia. Elis, tenho a nítida sensação de que sou eu quem ali fica.


    Se vir o Sono por aí, diga-lhe que esta é a última noite que passarei em claro para esperá-lo.

    Não te assustes. Só vim cobrí-la. A noite está bastante fria.

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)