quinta-feira, 17 de julho de 2014

Partida



Achava bonito isso de ter um filho. Achava poético. Meu homem destilava bonito isso de ter um filho e falava poético de mulher. Dizia ser plural. “Mulher é divino, vira plural”. Foi metendo na língua uma beleza redonda, falava que casa era um mundo e o mundo podia ser como eu achasse bom. Dizia da beleza irrepetível do pôr-do-sol, igual quando a pessoa casa e acorda todo dia para os olhos da outra. Dizia da ousadia de se viver vintage, monogâmico-apaixonado-feliz, que não tinha rotina em vida assim. Emprenhou-me as ideias, encheu-as de ternura e fiquei acontecida.

Não me ocorria ainda o que já era, a metáfora ficava enquadrada na janela que, de vidro tão limpo, deixava dúvidas quanto à verossimilhança, parecia aberta. Tinha ou não vidro? E a vida, virava outra? A paisagem vibrava agora numa nitidez livre de interposições. Recostada ao portal de entrada, fingia a distância entre a bela vista e o instantâneo do momento, entre a ideia e o ventre. Fingia que era muita lonjura, fazia a inocente, esperava o grito do corpo, o encarnar da palavra. Positivo.

Multiplicar, virar dois, gerar outra pessoa, pocar. Muita magia, muito amor, só improvável, acontecimento exclusivo aos outros. Não ficava bem para geração dos idos 80’s entrar em contato com algo tão primitivo. A maternidade seria um obstáculo a ser minuciosamente evitado, acontecimento bom só em outros mundos, não no das mulheres-independentes-dessucessu. Então?! Verifiquei que o medo reservado especialmente para a ocasião era de safra indeterminada, mas com ingredientes que sublinhariam o sabor único de se estar vivendo um evento natural, grandes doses de excitação das coisas impossíveis e insegurança profunda perante abismo desconhecido.

Sem mais, o corpo gritou. Cuspiu fora o pito, embrulhou o bojo, rebentou com os nervos, alterou as vistas, amaciou as carnes, adoçou as lágrimas. Foi tanto barulho que se precipitaram os testes para formalizar a certeza. O excremento disse sim, o sangue disse sim, o moço vestindo branco, brandindo seu canudo disse sim, o verde dos olhos do meu homem brilhou, seu sorriso disse “verdade, multiplicou”. O medo agora é travoso, conta só com o abismo do desconhecido diante dos pés, só.

Daqui em diante não tem atrás, de modo que só se pode ir para frente e, correndo, precipita-se o abismo. Nessas circunstâncias, é possível, no auge do limite, recorrer a ele, abismo. Não há reverter, só o reverso a se transformar em casa pra outra pessoa. Não se desengravida, é grave. Mesmo quem não chega a termo, ou que o termo seja o óbito, escolhido ou imposto, a pergunta se repete quando pede a situação: “já engravidou alguma vez?”.

O medo abre os trabalhos para angústia, imediatamente, a vista, nada de partes, medianos, parcelas, metades, nada de indefinições ou talvez, sem meias palavras, a gravidez é um estado irremediável e sua gravidade sela a alma com a marca de quem passou por ali. Nunca mais será possível se eximir do fato gerador. A ambiguidade de se estar duo prolifera, se espalha, transformando tudo em novidades incertas, e não saber dói. Gravidez gera dor, faz cair a ficha, a máscara, a casa. Potencializa uma energia sem cabimento num corpo só, nunca mais o frio, nunca mais só pra mim, há que chegue pra dois, até mais, vira-se gerador.

Agora já estava, já sabia, já era... agora a caneca de café cheia como um todo, seu bom dia à vida, sua partida diária, virara ameaça. Corta. Começa agora uma outra vida, além da que se carrega no buxo, a de antes entra em fecunda transformação. Curioso, todavia, é que se começa pela subtração quando a sujeita está é multiplicada.

- Elis Barbosa

Revisão: Leandra Freitas
Imagem emprestada: http://cimitan.blogspot.com.br/2007_08_01_archive.html

segunda-feira, 13 de maio de 2013

"como quem diz: água."


Sede: das agonias que se pode viver o elenco é vastíssimo, mas o que lhe secava a voz era sede. As intempéries que despem a alma em coisa terrena vão ao número das estrelas lastreadas céu afora. Todavia há os que transcendem, arrebatam suas almas dos dentes da agonia, ventam-na e alçam voo para beber. Não era o seu caso.


Sem molhar a palavra agarrada à garganta arranhada pelo traiçoeiro golpe da voz do outro, seguia em destempero, ponderando: o que é dito importa menos, fica sendo só a confirmação do que os olhos evitaram tocar. O leito daquele rio não acolhe, e, portanto, não deve ser tocado. Pensando bem é um rio ingrato, não evade pra fora de si, rouba a vida da semente, deixa seca a terra, infértil, intransitiva. 

Trajar ignorância fingindo sabedoria é maldade. Hipócritas Fariseus, quem sois para apontar no outro a falta que suscitaste?!  Água, onde será que encontraria? É dos elementos sem o qual não se pode existir por tempo vasto, especialmente porque a vastidão do tempo é horrivelmente exponenciada pela sede, e a recíproca gera ciclo cruel. Não cabe sede no tempo, não cabe no tempo chance de sede sem que se perca a razão.

A sede é saciável. A sede é saciável? O tempo que escorreu é perdido. Delirante percebeu a saudade tracejando aquele caminho desde antes de ele virar bifurcação. Água desespera todo o resto à ausência do seu frescor vivificante, de seu gosto adaptável, de seu cheiro que chama a terra ao verter. Atravessa e é atravessada, percorre, corrói, corrompe, fura e passa, sempre passa, deixando no encalço suas pegadas rasgadas sem pontas, pegadas parecidas com as que marcam os lençóis depois do intercurso com outra matéria semblante.

O gargarejo da água que corre determinada e serena abrindo os sentidos não se fazia ouvir. Pensava em revisitar a caixa de Pandora. Os pés do pensamento correndo a molhar-se nela, precientes de que a espera contida no último elemento trará alívio, revisitaria o início do mundo. A preciosa e escassa coragem para revisitar o momento exato do primeiro sinal, vem com o que sobrou da caixa. Espera.

Os sinais vêm antes do começo. Antes do gemido da dor do nascimento sonha-se ouvir o timbre exato da voz que nascerá. A generosidade dos sinais avisa daquilo que lhe está reservado. O advento, linha de largada para a qual se caminha, ainda e sempre muito crente, e definitivamente. Dali, se divisa tão somente a linha do horizonte, os desafios do percurso ficam escarpados. 

A densidade do tempo vai pesando conforme a obstinação com que se caminha para lançar o espírito a viver. Quanto mais, maior. E disso nada se pode dizer, posto que não haja mais nada a dizer, ao menos nada novo, nada que possa tornar ameno o desenlace. Esgotou-se tudo. E é o recurso da fé escoado no último que esse ‘tudo’ leva. Vive-se por não se poder morrer, podendo o resto ser doce ou amargo, a depender do gosto que terá a água ainda na fonte, a se decidir quando brotará.

O silêncio, quando muito alto, aumenta a pressão e se faz urgente buscar ecos na própria voz. Se ao menos soubesse marulhar, quem sabe não passaria da água ao vinho e pudesse aliviar um pouco o peso do vazio numa ébria, quase religiosa, consumição. Foi quando pensou assim: Talvez, bebendo do sangue surta mais efeito à intenção de refresco da água que não vem. 

Buscava, em delirantes reverberações de ausência, pistas para voltar à fonte, queria estar representada de si ante o poço dos desejos. Sem mais. Nem media(dores). Olhos baixos diante do ibiri de Nanã, assume a reza ousada de filha relegada: Diga dos meus dividendos, mas sussurre só pra mim, que busco por conta e risco próprios a fonte que me restabelecerá.

- Elis Barbosa

Revisão: Leandra Freitas.
Imagem: http://varaldobrasil.blogspot.com.br/2012/11/valquiria-imperiano-pinturas.html 

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Seta


Escreve leve, escreve simples, escreve direto. Não sai, não funciona assim, não sei fazer. Pense: como seria possível? Nada a que serve tal escrita peculiar é leve, simples e/ou direto. Compromisso sim. Parece que essa escrita submete-se ao compromisso de conceder palavras às imagens nascidas de muitos desejos. Entre a noite, sobre a qual me debruço precipitadamente, e o tempo em que vivo forjando dias com nomes e números, dentro de meses que se encontram dentro de anos, bóia essa escrita truncada, cujo sentido não pertence a ninguém, embora os significantes tenham nome e endereço.

O perigo de dizer, é justamente esse, abre-se, deliberada e descaradamente, espaço ao outro para que entre. Nem sempre ele o faz. São dos perigos.   

Os calendários sim são simples e diretos, de leveza atribuível a quem os for colorir. Sendo assim, não há como ser leve, simples e direto, nem para os calendários, concluo. Mas enfim, quem pode dizer que o tempo é, quando ele mais parece feitiço de passagem com rastos no seu eterno envergar dos homens.

Percebe, não é possível ir direto ao ponto, não é possível remover o véu que reveza, cobrindo ora os olhos ora o objeto. Ainda se faz elementar ver em partes, posto que o todo no tempo do agora dançaria inapreensível.

Repito sempre algumas palavras, algumas expressões, o olhar atento colhe minha assinatura e a legitima, inclusive ao sugerir que se faça diferente. Repito o modo, repito a estrutura, repito seu nome em silêncio nas preces que aprendemos justamente para repetir. Repetem-se as estações do ano, mas não sem intenção, ao invés de se repetirem inócuas elas trazem em suas cestas aqueles dias passados que mais queriam ficar. E nada disso pode ser leve, simples ou direto. Como poderia essa escrita o ser?

Responda ou... nada. Já fui devorada.

- Elis Barbosa