domingo, 21 de agosto de 2011

Bobinha

A primeira vida foi passada numa clausura terna de interiores sólidos. As manhãs tediosas eram contentes com sua dinâmica iluminada por um sol rigorosamente branco que nem havia lápis de cor possível para pintá-lo fidedignamente nos cantos das folhas dos cadernos, que por sua vez cumpriam a rotina de quebrar a continuidade de um ano inteiro quando se renovavam deliciosamente perfumados. Perguntava-se, de prazer, sem querer resposta: de onde será que vem esse cheiro de caderno novo? Todo início de ano letivo tinha o nariz enfiado nos cadernos e livros encantados, cujo perfume foi o primeiro dos alteradores de consciência que experimentaria ao longo do comprido caminho.

Depois vinham as tardes, igualmente repetidas através das semanas infinitas, sempre tendo como pano de fundo o bambuzal muito verde, muito alto, muito cabeludo. Os coqueiros triangulados ficavam por ali também, em outra sala, fazendo moldura para o céu que era a rede de então, a conectar os que ali pousavam os olhos. Tinha o riacho escuro, muito fino correndo num lugar sombrio, onde o sol achava apertado entrar inteiro e só o fazia em lascas. As amoreiras pesadas de frutinhas beliscadas pelos pássaros chamavam sempre para a brincadeira de colorir a cara das crianças que nunca resistiam à acidez doce daquele encarnado doído das amoras miúdas.

Ai, que rotina era aquela vida, os intervalos bem marcados por suspiros tediosos, de quem só continuava a vivê-la por curiosidade, pensava assim, com certo desdém daquela existência enfadonhamente possível, com distrações prazerosas e pesarosas. Havia tremores de coração, pequenas paixões como a hora do lanche da tarde nas casas das primas, que vinham anunciadas pelo cheiro de café fresco e mate. Elas sim eram felizes e não sabiam, caso estivessem em sua casa só viriam frutas, bananas amassadas com aveia e mel, vitaminas de abacate, maçãs, mamões, um festival natureba-hiponga orgulhosamente proporcionado pela mãe zelosa, que só aumentava-lhe a sensação de continuidade repetida com seu ritual deliciosamente guloso de bolos e biscoitos feitos por ela mesma toda sexta-feira. Tanta saúde chegava dar insônia.

Dormia-se sempre à mesma hora, acordava-se com carinhos, mimos e achocolatados, uma mesmice extensa e azul. Descobriu cedo os livros, a eterna fuga para todos os lugares, dentro de uma solidão confiável, dentro das histórias dos outros era possível viajar sem os olhos perscrutadores dos pais atentos. Teve o passaporte carimbado até as folhas terem de ser renovadas, e não parou nunca. Queria tanto a aventura de viver as coisas que só viriam depois que crescesse, mas tanto, que sentia ser melhor ignorar a vida de agora, limitando-se a reunir forças para o que viria quando tudo valesse à pena, quando fosse grande. Aconteceu que num dia de chuva forte, ouvindo a mãe cantar a música da chuva (muitas coisas tinham suas músicas naquela casa), repensou sua decisão e resolveu, por via das dúvidas, olhar os dias com atenção, passando a assumi-los intensamente. Sorte sua, haveria de recorrer a esses mesmos dias para matar a sede de sentido advinda da incoerência do mundo grande.

Cresceu em torno dos olhos curiosos por tudo que pudesse ter sentido maior ou diferente, desdobramentos inusitados, chances avessas. Conheceu pessoas sortidas, passou por lugares inesquecíveis, amou mais de uma vez a mesma pessoa, depois, quando acreditava não ter sobrado nada, amou outras pessoas. Mudou muitas vezes tantas coisas, que cansou e desejou não mudar mais, pediu para os dias passarem amenos, repetidos, sussurrantes, quem sabe a antiga serenidade das horas marcadas, da dieta programada, um pouco das antigas certezas, não lhe fizesse bem. Lembrou-se de quando queria tudo, olhou em volta e descobriu grata, feliz, que antes de qualquer lição havia aprendido a que precisaria depois para continuar, a de ir devagar, a de fazer rotina, a, tranqüila, recorrer às repetições delicadas dos dias olhados pelos outros como comuns, guardando o descanso morno nascido do conforto da rotina.

- Elis Barbosa

3 comentários:

  1. A rotina é a pauta para a história dos dias. Não é necessariamente apagadora do sentido, como muitos pensam. Se assumimos sua assinatura, marca-nos, inclusive, a autoria da visão. Quem não se lembra do menino amansador de vulcões, aparador de baobás, curador da rosa, espectador de pores-de-sol?

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  2. Mesmo sendo o adulto desta relação. Que saudade pueril!
    Bjs.
    Marta

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)