segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Vazante

Quê dê essa menina?!

As cabeças para o chão procurando o que havia de pequeno e fujão nas bordas daquele momento. Era hora, estavam no acabamento.

Pois fugira. Dos maus momentos, o da despedida era dos piores. Notava, mesmo recente no mundo, haver coisas de regalo e coisas de contrariedade. Ambas começavam na barriga, vibrando até os limites do corpo. Sensível demais ela era, de chorona acusavam-na sempre, diziam que chorava por tudo.

Vivia mesmo grande emoção em existir, talvez toda essa comoção se desse por força de os anos serem poucos, de a literalidade do mundo transformar fatos em fantasia e o contrário. Podia ser, mas olhando com cuidado, já se notava que tinha uma deformidade no olhar a transformar tudo em coisa muito grande. Já se vê daqui o “fundo-de-garrafa” embutido nos olhos muito atentos, quase arregalados. 

Além desse problema, nascera apegada, viera adicta a um pertencimento difícil de rastrear.

Carregava na cabeça insone a certeza mais absoluta de que todos os seres sentiam coisas, de que eles todinhos andavam no mundo a precisar de interação compreensiva, que precisavam de amor, que havia muitas novidades a aprender, muitas coisas mesmo. E se possível fosse, traria consigo sempre o que lhe rodeava, ligava-se às coisas com uma solidez e entrega desproporcionais, excessivas, a julgar pelos olhares dos outros.

Daí as despedidas configurarem mistério sinistro, quase mórbido. E todo ano era a mesma coisa, o mesmo sofrimento, despedir-se das pessoas que ali ficavam sozinhas umas com as outras, e ela sozinha, os pais, os irmãos sozinhos também, como se as despedidas soltassem bolhas enormes que isolavam as pessoas umas das outras.

Ficavam lá com seus pensamentos e não conseguiam mais falar por um tempão.

Era doído sair da casa onde despejava diária e torrencialmente sua pequena vida, os objetos passariam a inacessíveis, os cheiros de cada canto, a luminosidade das partes do dia. As pessoas, não veria mais, a paisagem das janelas seriam abandonadas, mas não era por mal, era inevitável. Despedir-se lhe doía de véspera.

A mãe garantia que partir não devia ser para tanto, que era, no fundo, coisa muito corriqueira, de todo dia, mas tinha paciência com ela, às vezes mamãe dizia mesmo grandes besteiras, e pra não preocupar a pobre fazia o seu melhor, fingia compreensão.

Agora imagine ser corriqueira a perda do abraço daquela tia gorda e quente, cheirando a bolo com café?! Os primos comparsas deixados sem reforço, a bisa ali perenemente a reclamar sem seus ouvidos ocos de criança, as primas grandes sem ter quem levar nos passeio de bicicleta pela cidade. Imagine se isso podia ser corriqueiro. E o vazio deixado de parte a parte. A impressão de nunca mais ou de pra sempre que ninguém consegue deixar pela estrada sem fim.  

Então era pegar de novo o longuíssimo caminho do tapete cinza, e pronto?

Pensar na hora do abraço de adeus dava dores na barriga, prendia o ar no peito, dava uma vontade de chorar que era muito maior que as coisas mais grandes. Seus olhos ardiam muito tentando fazer barreira contra o que cismava em transbordar. Descobrira, fazia pouco, que seu queixo também a denunciava, nunca soubera da traição, até outro dia quando a mãe, num ato de generosidade liberou “quer chorar, chora”. Como ela havia adivinhado? O queixo contraía-se, delator.

Mas esse ano tudo seria diferente, não ia mais chorar, não ia se despedir, e o esconderijo era bom, dentro do carro não havia o risco de ficar pra trás. Estava a salvo. Não responderia aos chamados lá de fora, ficaria ali bem firme e não ia chorar.

Olha só quem está aqui?! O que você está fazendo aí?

Ué, estou indo embora.

Você não vai se despedir das pessoas?

Não.

Mas minha filha, elas amam você, vão ficar com muita saudade, se você não se despedir elas ficarão sem o abraço de recordação!

Pronto, tarde demais, as lágrimas faziam já enchente no rosto miúdo.

Vem cá vem, sem chorar, enxuga esse rosto, não precisa chorar minha filha, a gente volta nas férias.

Aos soluços era impossível responder à mãe. Chorava pela tristeza da despedida, por conta da frustração de ter sido mais uma vez vencida pelo que vinha sem explicação e não tinha necessidade. Chorava de não conseguir obedecer à mãe.

Mas o que é isso?! Tem necessidade dessa choradeira toda? Se acalme, pare de chorar, é só um abraço, dizer tchau e pronto.

Nunca foi assim, nunca seria. Houve até um tempo em que acreditou na conquista de algum controle sobre as emoções, mas ilusões têm prazo de validade. Despedidas a fazem chorar, experimenta a finitude real das coisas e a riqueza infinita da troca amorosa, duas realidades que se olham, refletidas na despedida. Sempre o mesmo nó na garganta, o mesmo aperto no peito, o mesmo gosto salgado de choro preso tornando a saliva espessa, a mesma pontada na barriga. Desistiu de dominar, de esconder e de não mais chorar. Os abraços são regados à lágrimas prenhes de amor assumido.

- Elis Barbosa

3 comentários:

  1. Vim de novo, revisitar a memória lida de história que já me tinha sido contada em uma dinâmica de olhos e mãos. Isto de a escrita conseguir universalizar o particularíssimo acontecimento, ficcionar as biografias é mesmo genial. E você vem fazendo isso com maestria, amiga. Obrigada por me emocionar!

    Beijos,
    Robertinha

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  2. Querida Elis,
    Tudo bem?
    Estou escrevendo sobre o concurso Mulheres Escritoras, pois li que voce participou também. Estou escrevendo aqui para você, pois não consegui encontrar seu email.
    Por favor, como você fez para comprar os livros!?
    Agradeço demais pela atenção,
    DIana

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  3. Diana, acho que esses livros nao sao vendidos, em todo caso, anota meu e-mail e elis_barbosa@yahoo.com.br

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)