sábado, 16 de outubro de 2010

Benção de Despedida


Perdi.

Perdi numa fatalidade o que refrescava minha sede de maternidade. Fatalidade – nunca gostei da palavra, desprezada agora desesperadamente, genuinamente, ela e sua abrangência, que só fazem alimentar a impotência de quem perdeu – aconteceu comigo.

Fatalidade, segundo o Aurélio (claro que fui procurar!), carrega dentre outros significados o de destino inevitável que se opõe a liberdade (nada que eu odeie mais!), coincidência deplorável, acaso infeliz, funesto. Feia toda vida, essa palavra é dita sempre com gravidade que convém aos que não querem ou não podem se rasgar com o acontecido, com a desgraça. Tal qual eu mesma estou fazendo, exaurindo a palavra, transformando-a no Judas a ser malhado, estendendo-a o mais que posso para não contar o que realmente aconteceu.

Perder dói, de qualquer jeito, eu sei, mas ninguém me convence de que algumas formas de perda são menos possíveis à compreensão humana que outras. Golpes muitíssimo rápidos, definitivos e sanguinários trazem uma dor toda adornada de acessórios tipo ponta fina, como a perplexidade impotente frente à desgraça fresca arremessada dos infernos sobre os desavisados.

Perdi, faz noites, a encarnação do amor sem vergonha, sem motivo, gratuito e abundante, que morava conosco. Perdi meu filhote, minha menina, minha pretinha. Perdi um pedaço da família que vivemos zelosa e apaixonadamente. Perdi minha criança canina, meu exercício diário de viver com as diferenças, de amar o que não tem de refletir ideal algum, tem só de ser. E fatiava o coração de quem ralhava com ela, malandragem assumida em olhos que não mentem, nem pretendem nada que não a traquinagem da hora.

Aconteceu, como é dado às putas das fatalidades, muito rápido. Durou o mesmo tempo que levei para amá-la, tiraram-na de mim num instante. Foi um corte só, sem chance.

E eu que tinha alguns sentimentos para o jantar transtornei numa afluência desabalada de confusão dolorida. Seria possível? Para não haver dúvida foi bem na minha frente que o carro lhe abateu. O inexplicável me deu na cara algumas vezes, o corpinho a virar corpanzil de cão de caça, alimentado, abraçado, catado, examinado, amado, estendia-se em meio aquela poça de sangue, a língua pra fora, a alma ida. Diante dos meus olhos todos os detalhes. Por pouco não tentei trazer de volta ao corpo a alminha que, quem sabe não queria voltar. Sei não, sei nada.

Sentada no meio fio, corpo chacoalhado de gritos, soluços e dor, proibida de fitar a cena, todo o trabalho feito até aqui esvaído. Espiritualidade, racionalidade, tudo espalhado pelo chão, em cacos.

Soltei palavras cheirando a naftalina de tanto tempo guardadas, mal disse Deus e adjacências, quis saber do quanto podia e descobri que não podia nada.

Passadas horas milenares, vou me acalmando, sigo com o amargo na boca, mas os mecanismos de preservação da espécie já se pronunciam, vêem pra mim as memórias boas, como o olhar da Flor, e seus matizes de significados. Era muito comunicativa de olhares a minha pequena, ela pedia, questionava e se indignava (espirrava ao se indignar), e amava com o olhar, sem reservas. A minha Flor era todo dia lição de ser, confrontava-me ininterruptamente com sua certeza inabalável de que sendo ou não amada, importa é amar. Jogava-se sobre nós na certeza feliz de que não a deixaríamos cair, dando-se por satisfeita só com a tentativa se não conseguíamos. Num de nossos episódios argumentei com meu cúmplice o que nela me intrigava: a carência, a necessidade de contato físico constante em formas de abraço ou brincadeira, estar sempre conosco, num apelar sem fim e uma falta de pudor em pedir, uma persistência em expor sua disponibilidade feliz, atendida ou não atendida, lá estava ela, sempre de humor refeito, pronta, resolvida.

A resposta dele foi sorriso, daqueles de quem sabe o que vai por detrás da máscara e, portanto não precisa dizer palavra para comunicar. Desconcertada, mudei o assunto. Essas trocas silenciosas acabam com minhas resistências, com minhas barreiras, não têm filtro, saem de lá num canal direto pra cá.

E como me falta a Flor pra praticar viver, pra cuidar dessa casa e da família através da qual nos recriávamos protegidas.

Sei que a transformação das coisas exige um tempo que passa, cá estou submissa a esperar, tratando de viver etapas, e me despedir é uma delas. Vai meu filhote, vai nesse trotar estabanado todo seu, vai que eu fico aqui cuidando de tudo, vai que uma tia me disse sobre um céu para os animais e achei que lá te pertence. Saudade? Eu sei pretinha, mas me disseram também que depois melhora, confia que melhora. Vá logo amalucar o seu entorno, que hora dessas a gente volta a se encontrar. Te amo.

- Elis Barbosa

3 comentários:

  1. Amiga, gosto tanto da sua integridade. Sempre fico com pena quando donos de animais os perdem e se sentem desconcertados com sua dor, quase como que tivessem que se justificar por sentir um luto tão forte. Você não relativiza a sua perda, e ainda bem. Ora, eu, que não sei nada de bichos, mas alguma coisa de amar, imagino que seja tudo a mesma perda dolorida, a mesma contrariedade ao nosso mais impotente desejo de permanência. Afetos são laços que nos prendem ao mundo, à vida. Cortar (qualquer)um deles, nos desprende perigosamente do senso de pertencimento à realidade que nos circunda.

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  2. Toda perda dói. Desde a unha quebrada ou um vestido novo manchado com acetona a perca da mae, do amigo, ou do bicho de estimação.

    Mostra que somos humanos, que sentimos, que não somos robôs.

    Nesses raros momentos, o da sensibilidade é que louvo ser humana e não bicho.

    Fique bem, vai passar.


    Beijo

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