domingo, 24 de outubro de 2010

Galopes do Tempo

Seguem os dias, alheios aos que deles vivem, inalteradas caminham as horas, contadas pelo que é a melhor representação da angustiante passagem do tempo, o relógio. É sempre motivo de perplexidade dar conta de quão competentes são os homens nisso da representação. Protagonistas mansos de incríveis metáforas cósmicas, dedicados co-autores das mais finas ironias. Refiro-me ao relógio nesse caso específico, a pretexto mesmo de passar o tempo até que chegue a hora exata de dizer o que me vai por dentro.

O relógio é máquina dotada de elementos que fazem do tempo tormento. O de sol, primordial marcação da natureza, reflete imediatamente o caminhar luminoso e finito das horas. Foi abandonado por modelos mais portáteis, estes emitem despudorados os sons da dança constante dos ponteiros, o tic-tac-tic-tac-tic-tac que não cansa, nem se contradiz, nem tem vontade própria, seguindo indefinidamente num ritmo só e nada mais. Os mais sensíveis acharam de inventar ainda os modelos silenciosos, que torturam às cegas por não pronunciarem seus caminhos.

A passagem do tempo guardado dentro das horas contadas angustia se temos pressa, arrasta-se. Tenciona ao escapar veloz antes que se finde a necessidade das obrigações. De todo modo há beleza nessa invariável corrida repetida nos limites da circunferência, sabidamente infinita, dos relógios: a ânsia pela invenção de certeza. Concederam-se os inventores do relógio a ilusão de pelo menos uma certeza em meio ao caos imprevisível que nos cerca, a saber, o formato do correr das horas, dos dias (igualmente numerados e nomeados). Conforta-os o enquadramento seqüencial dado à passagem do tempo, depois das duas horas vem as três horas, sem chance de haver poréns vão se sucedendo.

Ora, se quero dizer que as horas são iguais e que há certa beleza nessa ilusão, posso também querer dizer que o recheio delas traz deliciosas repetições, como se estas pertencessem às horas. Assim, vou sendo tomada pela lembrança dos cheiros da manhã misturando o café, o marido morno e sonolento na cama que nos oculta do mundo, a pasta de dentes, o cheiro da casa dormida rareando ao abrir das janelas.

Ponteiros a correr, o alho e a cebola tiritam no refogado para o almoço, o vento de fora pitado de maresia, o cigarro aceso, a comida servida quente, mais café. O cheiro do banho abrindo a tarde vinda sempre mais cedo que o desejado. Não que a tarde seja indesejada, só o emprego dela é mal entendido pelos homens, cuja estúpida maioria cisma em trabalhar nas horas da tarde, deixando essa impressão de descanso roubado. As manhãs e as noites são começos, e entre os começos a continuidade pede uma pausa, daquelas de botar em ordem a vida de dentro. Tarde, moram nela as horas do pensamento, pensar entre o dorme e não dorme revela mistérios que, se muito indigestos, ficam por ali confundidos com sonhos.

As horas marcadas por partidas e encontros vêm acompanhadas de seus respectivos beijos de despedida e regresso, cada qual embrulhado nas ansiedades próprias de quem chega, de quem vai, de quem fica, de quem espera. São possíveis certas variações de sentimentos, mas as horas seguintes a tais marcos têm uma intensidade toda particular.

Os movimentos de breves saídas são igualmente repetidos às mesmas horas para que se cumpram os rituais dos compromissos mundanos, confere na bolsa os celulares, carteira (dinheiro!), chaves de casa, livro pra qualquer eventualidade. Saudade do que ainda nem foi deixado e para o que se retornará dentro de poucas horas “considerando que temos a eternidade”, fala que certamente pertence a outrem, já que não tenho ilusões de tempos desconhecidos, e assim me parece a eternidade. Teimosamente finjo algum consolo ouvindo essa sentença, afinal, é de bom tom ficar com a ansiedade que nos cabe.

São infinitas as repetições prazerosas e pesarosas que certas horas trazem em seu bojo generoso, de modo que, sem mais delongas chego à hora de dizer, e o faço muito crente, que só no aconchego do ninho do tempo pode se desenrolar o milagre da recriação nossa de cada dia, é lá que se fazem as vidas. Só lá , olhando atentamente, damos conta do fato indelével de que “todas as vidas são extraordinárias, que todas são uma bela e terrível historia”.

- Elis Barbosa

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)