sábado, 3 de setembro de 2011

Cancelamento


Aquele marulhar sem fim ao pé do ouvido enjoava por dentro. Nunca mais era pra já, mas esqueceram de avisar com um minimo de antecedência. Esqueceram não, nada era por acaso, diziam para lhe consolar. Pra quê consolo, não fazia sentido, o vazio em que agora o mundo ficava dentro sumia deixando só o rastro da dor. Dor propriamente dita ele não sentia mais, ele não sentia nada, só um pouco de curiosidade em relação a certa surdez que o acometia desde o acontecido. O que ficava fora dele fazia pouco eco, não se ouvia quase nada desde então, e com esse barulho de mar acabava por se ouvir menos ainda.



Tinha o menino, acordava sem saber de si no mundo, tateava pela casa encontrando em meio às sombras o vazio dos vazios, e o pobrezinho ainda nem falava direito. Sentia muita pena do filho, queria existir pra ele, mas sem a mediação de antes ficava tão confuso. Ele era completamente ignorante do que virara sua missão, de modo que, perplexo, esperava as horas passarem sem saber do que era feito.


Isso de precisar seguir, assim no tempo mundo, nunca lhe parecera estranho até então, mas agora como faria? Rotina nunca tinha sido algo sobre o que se demorasse, acontecia bem como esse barulho de mar, naturalmente, e tudo respondia num ritmo embalado por uma constância boa. Sem o almoço posto não vinha a fome, a ausência do cheiro de café deixava-o sonolento, nada começava nem terminava. Exceto pelo menino que chorava em intervalos precisos, ficava difícil divisar uma hora da outra.


A despeito do que lhe faltava por dentro, o ritual havia sido cumprido, mas outras providências pendiam e tinham de ser tomadas. Entrou no curso de idiomas observado pelas mulheres do recinto, sabia do impacto que sua aparência causava, era considerado um homem bonito. Percebeu quando procuraram a aliança para certificarem-se de seu estado civil, notou o pouso de um sorriso de canto na boca de uma delas, aprovavam-no sem saberem que não era mais nada, que o anel no dedo existia à revelia  dele.

- Boa tarde.
- Boa tarde senhor, posso ajudar?
- Sim, minha esposa estuda aqui e eu vim para cancelar a matrícula dela.
- Qual seria o motivo do cancelamento?
- Ela morreu no mês passado.      

Não era a primeira vez que repetia essa sentença, sabia que não seria a última, mas compartilhava sempre, de olhos vazios, com a perplexidade gerada nos que a ouviam.

- Como? Eu não entendi senhor.
- Eu preciso cancelar a matrícula da minha esposa, ela não virá mais, ela morreu no mês passado.     

A mocinha nem fechar a boca conseguia, ele também não entendia e por isso não pensou mau dela, aceitou seu aceno de cabeça e partiu, deixando no ar um episódio de morte. Carregava pesado e oco o fardo que era o abraço de uma morte precoce demais para ser anunciada.

- Elis Barbosa

2 comentários:

  1. Toda vez que releio, a voz da cabeça tropeça e o coração se estilhaça num estrondo de vidro.

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  2. a verdadeira dor,na verdade é a ausência dela; é a nuvem de perplexidade existente em um mundo peculiar.....

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)