segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Histéreo

 Essa imagem é o elo entre tudo que eu te disse e você ouviu.


Histéreo


Abro um livro para conhecê-lo. Eis a desculpa mais ordinária para se abrir um livro. Tive por ele curiosidade e invadiria suas entranhas, vazia de nobreza, egoísta na intenção de saber o que lhe ia por dentro, mais nada. Olharia nos olhos mais um dos tantos habitantes dessa casa cheia de uma solidão movimentada pelas historias dos outros imiscuídas à minha. Queria saber o que lhe ia por dentro. Agora não quero mais nada.

Como uma bomba detonada de propósito, cada virada de página é um beliscão fino, doído no agudo, retorcedor de entranhas. O futuro deitou no chão com medo de ser atingido por todas as perguntas sem respostas que guardei, desde quando meu tempo era o da manhã, por tantos motivos. Nenhum legítimo o suficiente para fazer desaparecer a voz indagadora, insistente, empacada. E tudo nesse deflagrador de flagelos vem trançado numa poesia tão absolutamente doce, de uma potência toda delicada, macia, substancial. Fiquei miúda, imensamente miúda. A voz do livro deitou sobre as coisas mais essenciais deste imaginário devoto à beleza, à nobreza, à honra, às obrigações para com tudo que lhe envolve, devoto ao ideal primeiro, a saber, é dever tornar o mundo melhor. Deitou sua musicalidade contundente, e sacudiu seu cobertor quente sobre a indignidade egoísta de se poder tanta coisa, mas ainda assim tentar tão pouco, que sucumbi num pranto magoado.

A beleza da forma com que tudo é dito passa uma mão pelo meu rosto soluçante, e com a outra me abraça de modo a cativar minha lealdade irrestrita. Eu quero fazer também. Quero escrever ou ler, ou cozinhar, ou qualquer coisa que um dia faça de meu reflexo eco a estremecer no outro a voz que não pára de perguntar. Todo mundo tem uma voz dessa para si.

Soluço sufocado, eu no peito do livro, desconsolada, concluo pela minha inutilidade, minha ineficácia, assumo meu espírito de uma pobreza inefável, minha voz não faz eco, não tem peso, nem sentido. Minha existência mesma não vai nem vem, fica boiando nessa continuidade esquisita que nem parece continuidade. Ao que é que darei seqüência? Voluntariamente nego-me à reprodução de minha própria espécie, por desgosto e impossibilidade e confusão, a trindade que desorienta o momento histórico. Disseram que disseram: os homens modernos seriam “amantes de caminhos sem metas e de metas sem caminhos" e eu só faço repetir, desalentada na confirmação do óbvio sempre a me anteceder. Não acredito na modernidade, nem em sua pós, não acredito em nada que não tenha propósito, e dói no fundo dos olhos ser assim tão reta, tão linear, tão obtusa, tão limitada.

Será que fragmentada sente-se menos angústia? Nada há nessa casa que ecoe o que digo, menos ainda que me negue. Não tem criança aqui pedindo o elementar, não tem ninguém precisando ou querendo nem pingo de nada. Tem os bichos amados que já eram nascidos quando chegaram, nada aqui nasceu de mim ou me é continuidade. Não há obra, não há certezas, não há motivos, não há sequer o talento luminoso que a poucos transforma em necessidade para os que o têm.

E tenho vontade de parar de escrever, de parar de estar aqui e mudar-me para qualquer lugar onde os nomes das coisas correspondam aos seus significados. Sou tão absolutamente egoísta de minha infelicidade que digo isso fazendo exatamente o contrário, e por um momento me integro aos que me cercam nesse nonsense coletivo que se expande horrivelmente pelas ondas invisíveis da coisa virtual.

A resposta do livro? O que tens é na verdade uma solidão imensuravelmente humana, perene nessa busca pelo que adotou como utopia, mas à qual não pode pertencer, posto que a dita existe só aos que se permitem o direito de sonhar. Acalma-te, amanhã mando que te procure a dúvida, e confusa crerás uma vez mais que talvez não seja bem assim. 

- Elis Barbosa

7 comentários:

  1. "(..)na intenção de saber o que lhe ia por dentro, mais nada
    e o que há por dentro do seu próprio livro? Aquele que foi escrito meio que desapercebido e que traz consigo uma imensa bagagem que apesar de enorme ainda assim não lhe pereceu convincente.Talvez o óbvio esteja descrito em cada palavra escrita neste livro indecifrável.Indecifrável pois é difícil acreditar no que é simples e claro.O esforço excessivo por aquilo que acreditamos ser o único meio não nos permite enxergar outras opções a não ser não escrever mais,não ler mais,não fazer mais...
    ou você abre sua mente e releia este livro buscando o significado simples e claro das palavras ou você rasga de vez..afinal bibliotecas não faltam

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  2. Esses anônimos... me matam de curiosidade, chega minhas vistas ficam embaçadas para o conteúdo do comentário, me seca a garganta a curiosidade pelo nome exato do remetente, eu e essa tara com nomes!

    Saiba, no entretanto dos poréns, que estás sendo matéria de profunda reflexão por parte desta louca que vos fala.

    Beijos

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  3. me matam de curiosidade, chega minhas vistas ficam embaçadas para o conteúdo do comentário

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  4. só pra esclarecer o que nossa "anônima" quis dizer: "Não vi o texto pela ótica de Freire, mas sim pela ótica de Freud."
    Depois desse comentário suas vistas desembaçaram e a curiosidade já parou de te matar?
    ;)
    beijos

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  5. Sinto-me assim toda vez que escuto Jimmy Page tocar, Jim Morrison cantar; toda vez que degusto uma composição do Pink Floyd; cada vez que leio Kafka, Salinger ou Capote. E fico pensando: putz, minha guitarra não é tão diferente da do Jimmy Page, é praticamente a mesma coisa, salvo alguns caprichos de especialista. No entanto, se ele pegasse a minha guitarra, certamente faria o mesmo estrago que faz com a dele! Exatamente no mesmo espaço onde sou limitado ou me esgoto com relativa frequência, ele veria possibilidades por mim inimagináveis.

    Tecnicamente, o aparelho fonador de Morrison também não devia ser muito diferente do meu.

    De forma semelhante, o mesmo pedaço de papel e a mesma caneta que uso poderiam produzir uma obra-prima pelas mãos de um dos escritores mencionados.

    O que me salva é a cara de pau. Se não fosse por ela, eu sequer teria começado. É muita audácia minha me aventurar nos mesmos campos que esses caras. Sorte a minha que não tenho pudorzinho em relação a isso. Daí, pulo de cabeça no nonsense coletivo e vamo que vamo.

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  6. Assim como foi também em estéreo que ouvimos, você daí e eu de cá, esse grito do sentido, querendo se fazer ouvir.

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)