quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

QuImErA


Cumprimentando o dia de lado, deixou o formato do corpo na cama e depois acordou. Esfregava muito os olhos para desmanchar as imagens do que ainda não secara o suficiente para se saber de ser só sonho. A noite não havia sido das mais generosas. Isso considerando o que é conveniente de se ter em fartura. O sonho insistente, a continuar entre um e outro despertar de consciência, teria sido de generosidade redentora fossem outros os tempos.

Os olhos inchados de não chorar reclamavam no espelho lhes ter sido negada a chance de entrega às lágrimas. Agora mais essa, o corpo ressentido de não ter podido viver às cegas um simulacro dos mais bestas! Era muito antiga a despedida, cujo processo arrastou o tempo e o resto, atravessado o pântano com o corpo e o espírito, cada qual embaixo de um braço, partiu quando julgava não haver mais saída, foi sofrido, todavia passado, portanto história, e das que não se fica mais a repetir o lado B. Honestamente, ela não ia passar aquilo tudo em revista de novo, o residual  fora já mais que processado.   

A falta de coerência é que irritava, mémoria traidora a ressuscitar fantasmas numa despropositada perspectiva de talvez, quando tudo, absolutamente tudo estava tão bem assentado. Havia inclusive um jardim esplêndido, cultivado com amor, boa vontade e alegria, onde antes era tudo luto. Ofendia a clareza com que ainda estavam guardadas imagens, vozes, sinestesias. Estava tudo ali por dentro, mas onde? 

Enquanto o cheiro do café passando pelo pó separava a noite do dia, lembrava-se da conversa que tivera com seu espelho espiritual, dando conta que, talvez, o teor do assunto tenha mesmo levantado certa poeira, eriçado sensibilidades adormecidas. Certo, mas daí a inventar discursos renovadores de votos?! Não foram essas as curvas percorridas na conversa, falamos sobre perdas, sobre resignação, sobre reconfiguração de impossibilidades antigas transformadas agora em vias passíveis de trânsito. Entende?

A tristeza de ter revisitado tantos lugares em um corpo só, e de tê-los desejado, era ofensiva à realidade de um presente cheio de outro amor, que participou do sonho tão somente em consciência de compromisso. Será verdade que amor multiplica sem substituir? A culpa de ter descoberto algo mais na dimensão de sua bagagem, dos desconhecidos componentes da banda que também participavam da composição de sua história, era violenta, mais amarga que o café que não podia adoçar. Acabara o acúcar sem que tivesse se dado conta. Muito engraçado.  

O tempo quase todo sabia estar sonhando, a intuição do melhor caminho despertara-a algumas vezes, mas adormecendo voltava ao ponto de onde saíra, e num reflexo curioso do que foi a realidade percorreu o caminho até o fim, sem que nada tenha sido concluído. Posso passar essa vida inteirinha sem desvendar o mistério que é esse não fechar de portas, essa inconclusão, fazendo o favor!  

O sonho estranho orquestrara seus símbolos com maestria, estavam representados os maiores medos, as frustrações mais irremediáveis, até o mar apareceu naquele delírio egoísta, mas foi diferente. Dessa vez, dessa única vez, o mar era tranquilo, embora em movimento. Havia ondas gigantes que ladeavam seus passos, sem respingar nela o sal, bem uniforme e comportadas elas passavam imensas, acenando tranquilas que não era hora de bater, que por agora não passavam para afogar.

- Elis Barbosa

fotografia por Edward Hopper, Morning Sun, 1952.

4 comentários:

  1. Amiga dizedora da alma da coisa, do invisível dela, e de forma tão contundente que, sem que se saiba da coisa, sente-se como, sente-se o quê.

    O que deveras se sente?

    Irmã de minha alma, saudades!

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  2. Adorei algumas imagens que você criou nesse texto de sonhos inquietantes. O café, a onda. As coisas das quais nos lembramos, sem que necessariamente elas assim tenham acontecido.

    Fazia tempo que eu não passava por aqui. Estava com muitas saudades. Estou. Kk.

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  3. É totalmente compreensivo que tenha criado tamanha poesia –que não deixa de ser uma análise psicológica- diante de uma imagem que na grande maioria das vezes passa desapercebida aos olhos humanos normais (talvez normais são cegos e ignorantes,prefiro a loucura do mundo subjetivo) , porém me identifiquei com o momento em que minha vida tomou o pior de todos os rumos possíveis e imagináveis.
    Vejamos então: se 100 pessoas lêem o mesmo que eu li, cada uma dela vai ver de uma forma diferente, então você narrou a história de 100 pessoas diferentes sem nunca ter visto ou conhecido as mesmas

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)