sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Hormônios


Vou atribuir aos hormônios essa vontade incessante de chorar, de ganhar abraço sem fim, de virar criança de novo, de não saber do que conheço, de amar sem saber que dói. Quero de novo a coragem de desbravar sem medo as trilhas que me chamam. Quêde a força de antes? Terá sido minada pelas sangrias dessa condição de mulher?

Envelheci antes da hora, amarguei.

Todo um universo construído em torno da que não parece ser mais eu. Como se assistisse, sem pipoca ou conforto, as cenas que se sucedem intocadas por edição.

Vou dizer dos hormônios que eles colocaram meu brilho pra dormir, as certezas pra andar, a alegria pra correr. Só pode ser. Faz pouco que havia sentido espalhado por todo o canto. Nem comer mais dá gosto. Esvai-se com a regra o miolo da essência? Houve tempo que o sinônimo era saúde, vitalidade, fertilidade, apesar das dores, a despeito do ressentimento do corpo.

Sabe o que seria bom? Escrever uma crônica daquelas em que a narrativa não sangra, coisa com alma parnasiana, feita de vidro transparente, sem vísceras, pra ver se o espírito descansa de sentir.

Vou atribuir aos hormônios essa dramaticidade contida, essa vontade latente de poder chorar em qualquer lugar, de fazer poesia na padaria, de cantar e gargalhar por deboche, raiva, inveja, de enlouquecer sem que ninguém dê por isso como coisa feia. Deus, quantos juizes insanos de plantão fazem cerca para as palavras que meus olhos dizem poupando a língua queimada pelo chá de capim limão que meu avô não temperou, e por isso não teve efeito.

Preciso parir novo sentido para a realidade que procurei, da qual gozo sem nem sempre estremecer. Bóio num meio de caminho resistindo atravessar fronteiras por ter de fazê-lo diplomaticamente. É proibido invadir, irromper, dominar. A natureza que me chama é bacante, mas pedem que me comporte como dama. Tem que só posso assumir uma natureza respeitando a outra, não há para mulher de luta paz sem guerra.

Dizem mal da guerra, é feio salivar pela peleja, bonito é ser serena, mas eu reproduzo das mulheres que correm com lobos, que o ciclo é de vida-morte-vida, e tenho ímpetos de sangue quente. Há, na imensidão de dentro, acomodação para todas que se pode ser, cada qual no seu momento.

Pelo que me tomam, pensam mesmo que parir é ato só de sorrisos? Não é, há choro, ranger de dentes, palavrões, agressão, impulso vital que não deve ser denegrido pelo medo que tem o outro do que vai encontrar nos olhos de quem faz a manutenção do mundo e o multiplica.

Definitivamente a culpa deve ser toda desses hormônios malucos que alteram a voltagem da energia, a temperatura das fendas, a textura da pele, o crescimento de unhas e cabelos.

Minha casa está em paz, os animais dormem, o silêncio e a luz falam de amenidades na copa enquanto me debulho inteira, de castigo no quarto de trabalho.

- Elis Barbosa

4 comentários:

  1. Amiga querida, eu leio, leio e acho cada vez mais preciso. Sobretudo, pela densidade do fluxo, que é mesmo de escorrer pelas pernas, pelo dia. Há também as vezes em que o outro, ignorante de ciclos, cisma em atribuir à turbação hormonal o que é lucidez nossa, tão cara. E se ficamos intensas, então... Torcem a boca como se provassem comida com excesso de sal. Mal sabem eles que essa ração sem sal de quem não quer elevar pressões é que nos é, tantas vezes, indigesta ;-)

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  2. Linda de minha vida! Obrigada por permanecer. Por ser assim e por atribuirem erradamente é que disse que "atribuirei aos hormônios", mas a gente é que sabe né amiga? Beijos

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  3. Elis! Coisa mais intensa esse seu texto! Ele transborda, assim como nós. Ainda bem!

    Beijo,
    Anita.

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)