domingo, 14 de outubro de 2007

A Misericórdia do Divino



Foi um sem anos de comunhão sacramentada pelos mais sinceros votos da guerra, cuja sentença final para os prisioneiros desferiu-se como segue: “Eu vos declaro marido e mulher.”

Eis o início de mais um lar doce lar... tão doce quanto a casa de doces da bruxa que seduziu João e Maria para devora-los (acho que doces não lhe apeteciam o paladar...). Todas as coisas são assim no final, com dois lados e muitos revezes. De qualquer modo, depois de 50 anos de pena, cumprindo-se todo o santo dia, numa sólida e perene rotina de incertezas quanto a que medo sentir nos próximos cinco minutos... era para ser. Certamente era parar ser, caso contrário um dos dois não teria sobrevivido até esse momento. Aliás, as quase mortes foram algumas, morte de fato houve uma, mas que não deu-se a conhecer, e nascimentos para se fazer cumprir a sentença de forma objetiva e encarnada foram oito.

“Crescei, multiplicai e enchei a terra.” O Divino tem mesmo um senso de humor irretocável!!! E assim se fez e assim se faz...

Deixemos o fatalismo de lado e voltemos à historia que de fato ocorre e que no propomos a discorrer sobre: a misericórdia do Divino.

Pois bem, rezam os fatos reproduzidos oralmente de geração em geração, e que ninguém se atreva a questionar a veracidade de fatos verídicos e verdadeiros que por mais que se conte não se aumenta um ponto sequer, me garantiram, ela não queria se casar. Não queria porque não era pra ser, segundo ela, pobre e ingênua criatura, completamente alheia aos desígnios do Divino...

Era bela e isso as fotografias amareladas pelo tempo atestam, mesmo retocadas, provam que era bela.

Uma bela sedutora decidida a borboletear livremente pelo mundo, como era de seu capricho fazê-lo, por entre crianças e tias velhas que lhe tinham por algo de muito afável e bom de se ter por perto, como a um gato que agrada pela beleza e pelas exigências próprias dos belos, carinhos e afagos. Enfim, estava decidida a virar fada!

Isso tudo, em idos de 1950 não era mesmo normal, não era pra ser... mas ela bem que tentou, esse mérito não podemos negar-lhe. Seus pretendentes frustrados eram tantos, e sofriam tão horrível e profundamente que chegava a doer o coração dos que assistiam o farfalhar das asas perfumadas daquela travessa!

Contudo, em idos de 1950 isso não era normal, não era para ser. Além do mais, seus pais já estavam ficando com uma certa idade e não podiam correr o risco de, quem sabe (Deus me livre!!!) deixa-la no mundo sozinha, pior, solteira! A família não podia arcar com uma situação desse porte, pois dado que não eram ricos, não podiam ser considerados excêntricos. Bastava já o fato de sua mãe ser casada com seu tio paterno (mas essa é outra história)!

Era preciso casa-la e logo, já estava com seus 24 anos e ainda andava por aí, solta, livre, sem culpa, feliz!!! Como podia ser?

Repito-me, não era para ser, tanto assim que finalmente o escolhido apareceu! O Divino, cuja sedução sobrenatural finalmente faria a borboleta faceira demorar-se na flor até ser capturada!

Como não era de interesse de nossa pequena escolher, o sujeito foi apontado por seus pais que, diante daquele belo não resistiram, como ela também não haveria de resistir. Era um moço garboso, alto, de ossatura forte, porte elegante e bigodes bem feito à época (tipo Charles Chaplin, muito fashion!). Traços afilados, sorriso bonito e olhos verdes. Durão, sério, muito sério... Trabalhador, defensor ferrenho da moral e dos bons costumes... adequadíssimo aos olhos de todos!

Aos dela, bem, pelo que se sabe impressionou, havia algo naqueles olhos, havia algo naquele sorriso cínico de canto de boca que a fez parar e lançar um segundo olhar, que a fez inclinar-se sobre aquele reflexo para tentar enxergar talvez alguma coisa que parecia embaçada, distante... o que seria aquilo a acenar-lhe?

Foi o suficiente... afinal, é de conhecimento de todos que o impulso que nos move a um segundo olhar, que dure o tempo mínimo de um segundo furtivo, pode ser o suficiente para o fim de uma era e o começo de uma novidade... ou não... mas nesse caso foi assim! Acabou-se o que era doce e, quem comeu arregalou-se!

Tinha mesmo de ser, pois apesar de todos os percalços, quis o Divino apropriar-se dela. Sim, porque havia percalços... afinal de contas, pelos bastidores nosso bom moço era comprometido com outra senhorita que não nossa estrela! Para que não se falte com a verdade há que se contar a história toda: ele era noivo!

Curiosos esse fato não? Respirem... é uma historia e tanto essa! Digna de seu tempo, idos de 1950... bons tempos aqueles em que se havia o que transgredir, hoje em dia, como se pode tudo as coisas ficaram muito vazias e sem graça... Enfim, voltemos agora nossos olhos para esse homem que surge, do contrário não termino nunca de contar meu causo!

Era noivo nosso enviado!

Vamos nós agora dar uma olhada mais íntima na direção deste sujeito intrigante, e dar conta de sua situação, até para compreendermos melhor o que se passa.

Pelo que se sabe morava sozinho, no centro de sua cidade, que acontece ser a cidade do Rio de Janeiro... bons tempos de boêmia aqueles anos na cidade do Rio de Janeiro! O anjo justiceiro deste conto era garçom e vestia muitas roupas diferentes... uma para cada lugar em que tinha uma namorada ou noiva! Não era dono de muito escrúpulo ou senso de moral... mas conhecia bem todos os códigos e o caminho das pedras para chegar onde quisesse. Eis, talvez aí seu diferencial em relação aos que fracassaram em capturar nossa fada: ele era, nos bastidores, na essência, tão livre quanto ela!

Vejam que coisa incrível: dois iguais que encontram-se, miram-se, admiram-se e voilà, apaixonam-se! Foi assim com Narciso também, lembram?

Contam que foi uma verdadeira queda de braço entre os dois, uma luta acirrada, sangrenta, cheia de sedução e força e, quando já não se sabia qual dos dois voltaria de dentro da caverna, quando já não se ouvia mais o que acontecia, eis que surge nosso herói com a megera pela mão, aparentemente domada!

Contudo, há que se fazer justiça e dar a César o que é de César, ele também teve suas perdas, uma vez que não havia empenhado tanta energia pelo puro prazer da vitória, estava também abatido, preso como algoz à sua vítima! Se libertasse sua prisioneira não teria mais sob seus olhos o troféu que lhe comprovava a vitória!

Sendo assim, inevitavelmente teve de romper com sua noiva para oficialmente apoderar-se daquela fada e, a partir daquele momento soube que nunca mais poderia ter outro compromisso que não com aquela faceira. Era um novo homem! A partir de agora, só haveria espaço em seu coração para casos escusos, romances ilegítimos, mulheres que se entregariam sem nada pedir em troca, amores vagabundos...

E assim foi e assim é até hoje: ela com ele e ele com elas!!! Nesses cinqüenta anos de cumprimento de pena, incontáveis aventuras e desventuras foram testemunhadas pela atenta platéia que se divide entre os cúmplices de um e os cúmplices de outro. Mas para acabarmos de uma vez com essa contação sem fim sem perder o rumo da prosa, atenção à parte final: ainda não acabou, isso não é tudo pessoal, ainda hoje tudo continua exatamente como começou!

Houve um tempo em que ele se foi... cansou-se daquela rotina de várias mulheres e uma esposa, de repente achou que ela também podia estar entediada com aquela rotina que atravessava os anos, então resolveu mudar. Mudou-se para outra cidade do estado e transformou uma amante em sua mulher e passou sua esposa para o posto de amante.

Como não perdia o estilo jamais, mantinha o contato e em cativeiro de nossa fada que, a essa altura transformara-se em verdadeira Meméia, através de cartas, sim queridos cartas de amor!

Ridículo? Certamente, todas as cartas de amor são ridículas, do contrário, já sabemos muito bem, não seriam cartas de amor!!!

Visitas furtivas seguiram-se às cartas, a misericórdia do Divino, a Providência não faltaria com nossa heroína! Era de mérito que não perdesse de todo seu objeto de... de...de vida!

O tempo passou, a amante enjoou e hoje, às vésperas do fim ele pertence à ela novamente, ao menos enquanto não fala ao telefone!!! A misericórdia do Divino: devolve a ela o corpo do homem que nunca teve alma e juntos seguem, contemplados, cada um no seu cada qual... juntos para todo o sempre... como tinha mesmo de ser!

4 comentários:

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  2. Vamos ponto a ponto! Que bom que ficaram as dúvidas... são elas que nos movem! O que posso dizer é que a realidade é mais fantástica que a ficção, então, sobre isso caríssimo leitor fica o mistério...
    As coisas que são narradas como “tinha que ser”, de um modo geral, só são narradas assim depois que já foram, repare... não há consolo maior que esse. Mas também existe o “tinha quer ser” que só foi assim dado o desejo de que assim fosse! O caso de nossos personagens não é caso de destino, é caso de desejo de vontade de que assim tudo se desse já que não se conhecia outro caminho possível.
    "A Misericórdia do Divino" está justamente a de não negar o desejo ao que procura, ao que anseia, seja lá qual for esse anseio...
    Não houve algoz nem vítima, não há algoz ou vítima nunca quando se trata de relação amorosa... houve vida! E digo isso sem qualquer juízo de valor em relação a essa vida.
    Concordo que o “pode tudo” é mais sentido que praticado e, veja só, tenho a impressão é de que o “poder fazer tudo” é algo de tão nefasto que basta a sensação, basta o conceito para tornar o resto preto-e-branco.
    Fico feliz que tenha gostado, custou a sair... obrigada!!!

    Beijo

    Elis

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Bom, sendo assim, acho que vou escrever mais contos! Contando com o teu retorno!

    Beijos

    Elis

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