domingo, 8 de maio de 2011

Trilha


Não coleciono fantasmas, desgosta-me deveras a idéia do sobrepeso considerando a lonjura da viagem.  Entedia-me a impressão de repetição infrutífera sobre uns assuntos mortos. Desagrada-me encontrar defuntos, não por temor ou desprezo, mas por gostar de encará-los como fatos, memórias acessíveis no museu das lembranças, se e quando me aprouver.

Tem que desconheço as regras aplicáveis aos sonhos, às lembraças e ao uso da crase, de modo que pode acontecer de as noites serem invadidas por imagens carregadas de cheiros e vozes que faz muito se foram. Acordar de sonhos que transformam o relegado ao ostracismo em obscenidades é constrangedor, como quando se molhava a cama da infância, o desconforto frio anunciando que tudo seria mais trabalhoso e irritantemente explícito. Melhor nessas ocasiões é acordar só, o amassado da cara de outras vidas, se temos acordada testemunha atenta é flagrante certo.

O enredo dessa noite foi especialmente intrigante, sugeria a vivência de uma maternidade adiada, com a participação especialíssima do príncipe da Branca de Neve, que, comprometido não podia estar presente naquele sonho, nem acompanhar o processo daquilo que estava em formação, fato celebrado por mim por achar que havia muito fora de lugar. Embora não admitisse ainda que era um sonho, algo dizia claro que a realidade não poderia ser assim tão fantástica e tão arbitrária. Afinal, que hisória é essa? De quem? Nossa é que não haveria de ser.

Tal qual todo o resto das coisas que se despem abruptas aos meus olhos, esse arroubos oníricos vêem sempre quando a guarda está baixa. A vida bem comportada, os problemas disciplinados, os prazeres bem distribuídos, e aquela sensação insana de eternidade. Tenho medo de mudar de fase, de estágio, tenho medo de subir mais um degrau, é quase instintivo saber que crescer, mudar, envelhecer (entre outros) é avassalador, de arrepiar as almas mais indiferentes. Penso em propor negócio, gostaria de entrar num acordo, acredito ter com o que barganhar, afinal, até aqui sigo obediente, embora não resignada, ao que vem sendo posto em pauta. A vida manda e eu obedeço, mereço uma pausa, recreio, uma aliviada na tensão. 

Resolvo não tomar em casa o café de amanhecer os dias, fazer recender seu cheiro ressuscitador de esperanças naquela atmosfera ainda indivisa poderia desgarrá-lo do lar a que pertence agora, sem falar na boca ainda amarga com o gosto do reencontro despropositado, vai que não é identificado o amigo resignificador de todas as emoções? Seria arriscar marcar desnecessáriamente uma relação imensamente prazerosa de uma vida inteira. Sendo assim, verificada a bolsa, parto em jejum para as expectativas marcadas na agenda do dia.

Comprada a passagem é hora de acordar, ainda pensando no sonho acho melhor ir de expresso, é impessoal, mais forte que o caseiro, chega com seu gosto executivo e sai fechando tampas, abrindo janelas, transitando pelo espaço com referências comerciais. Distraída com a imagem de duas senhoras que também tomam seu café, mas na mesa ao lado, debruço sobre a imagem e vejo que são mãe e filha, passadas no tempo, cuidando com carinho e silêncio uma da outra. Na caderneta mental que carrego para o que não pode ser dito tão logo seja concebido, passo a anotar os elementos que comporiam a equação, cuja incógnita seria algo sobre maternidade, very funny.

Sinto a gravidez do sonho e me irrito, lembro do bebê que visita minha casa toda semana e tenho saudade, toca o telefone e atendo. Minha própria mãe quer saber de mim, se, quando e pra onde vou hoje, domingo devemos passar juntas mas ela não liga de estar se antecipando em dois dias, ela é louca por mim, morre de saudade dos tempos em que morávamos juntas, e humana que é posso afirmar sem pudores que trapacearia se assim pudesse ter um pouco mais de nós como era antes. Mamãe assume hoje com certa tranquilidade suas incoerências e absurdos, o que alivia a todos nós da impressão de que o resto do mundo é que era louco.

No ônibus frio não durmo, cochilo, tenho encontros importantes, marcados por mim e pelo acaso, acostumei, a surpresa é com quem, se bem que nesse caso já nem isso é surpresa. Chegada ao lugar onde as imagens que alimentam meus sonhos estranhos nasceram, onde um encontro gratificante, elucidativo, e promissor se daria, e ainda onde o que não marquei sucederia acolhedor, acendo o intervalo consumido em fumaça mentolada, sento junto a um gato preto e espero que todos os elementos contidos em espaços de tempo tão diferentes sosseguem um pouco. 

Horas depois, cheia de novidades costumizadas, encontro minha irmã, minha mãe, meu eterno começo. Falamos das vidas dos outros, das nossas, e colocamos o pão do dia seguinte pra descansar. Acordo sem promessas, o dia passa e encontro minha tia, minha mãe, minha irmã, meu eterno começo. Volto a ser pequena, escorrego no sofá para caber naqueles colos que me suprem com o imprescindível para continuar. Assino a promissória da dívida que farei com certa ausência inadmissível e durmo, só um pouco, ao lado da irmã que ressona. Sinto a gravidez do sonho já quase esvaido, mas não me irrito, entendo. Somos todas prenhes do universo que vamos reproduzindo, algumas em gente, outras em palavras, algumas em gente e palavras.

Desperto brava, a promissória cobrada por telefone, abraço meu pai e meu irmão, olho nos olhos das mulheres que acompanho e compreendo a perenidade de tudo que é construído com amor. Abrando a rudeza, firmo no propósito de amar como me foi confiado. Toco de volta para a casa que venho construindo com tudo que levo desde sempre. Sinto a gravidez do sonho que se despede e tenho já saudade dele e dos vivos chamados fantasmas preventivamente, para que não me marejem os olhos, posto que são conservados por amor e gratidão, reconhecendo-os mais meus que nunca.

Grata e contente, seria desonesto furtar o sorrir advindo de se notar que tudo isso somaria só num monte de palavras não fosse a gula de quem se apropria de cada momento para saber mais, passatempo primordial dos que não têm nada de útil pra fazer.

- Elis Barbosa

4 comentários:

  1. Sonhos adelianos, que nem Freud explica. Só a literatura - e da boa! - pra dar vazão. Está tão rico de símbolos isso, amiga! Um banquete de signos fortes. Mais dez sonhos assim (com matéria de Quimera) e pares o zodíaco!

    Amo você.

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  2. Olá! volto a ler seu blog depois de tanto tempo. Para meu coração acertar com suas palavras, não devo lhe reconhecer e sim ser-lhe apresentada...posso ler?
    Prazer, meu nome é Rita.

    Um beijo!

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  3. Muito bom! "...cheia de novidades costumizadas..."-Prossigamos ao prêmio pelo expresso mover de pensar!

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  4. muito bom seu texto..
    diferente a ate biera um pouco o exotico "para mim".. e eu gostei..

    adorei seu blog..

    obrigada pela visita ao meu cantinho..
    volte sempre..

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