quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Regurgito

Voltei ao antigo cenário, separado de mim por eras intransponíveis de três meses. Pus os pés e todos os sentidos a serviço da investigação de mim, novamente envolta pelos vaporosos rumores da cidade grandíssima.

Pois não me abstive, espalmadas as mãos contra a janela do ônibus, toquei as imagens que se sucediam ao movimento ininterrupto do circo fantástico. Era o Centro. Abafado pelo calor da peleja dos que transitam entre empurrões, atropelos, encontrões. Sujo de todas as intenções que por ali desfilam confusas, ostentando muros marcados por imagens que só cabem lá. Luminoso, todo arrumado para receber a noite e suas ambigüidades. Vi, sentado sobre a Candelária, o Desejo travestido de santo esperando rever Maria ao soarem as sagradas badaladas das seis.
Ele não me viu, mas sentindo minha presença sorriu maroto.

Sabe bem de quem já esteve lá, de quem já pertenceu àquela Babilônia despudorada e gozou dos banquetes cordialmente oferecidos a Epicuro.

Sorri de volta, andarilha que fui de suas ruas incertas, dos becos surpresa, das paisagens-cartão-postal. Fui invadida por uma euforia carinhosa, por uma paixão generosa de quem partiu e não quer mais voltar a despeito de o amor ainda estar lá, agora livre.

Foi no tumulto daquela cidade que aprendi a ser, só. As gárgulas que moram lá foram os olheiros indiferentes da busca pelo que não sabia carecer. Os edifícios altíssimos, com suas vistas para o mar sustentaram o quebrantado corpo tantas vezes perdido, esconderam com suas sombras infinitas guerras épicas entre as mãos que buscavam os seios antes dos olhos e as que traçavam, indignadas, fronteiras intransponíveis. Há que se conhecer os caminhos para alcançar destino.

As águas salgadas daquela cidade limparam de mim o amargo do pranto pelas ilusões rasgadas diante do meu desespero, aprendi que água de mar clareia por dentro.

O anonimato das ruas entupidas de quereres guardou alegrias, descobertas, amores, sofrimentos, despedidas, guardou meu vagar insistente com delicadeza discreta. Lá é permitido chorar a céu aberto sem intervenções, mas só aos fortes sua beleza ensina que volta por cima é canto de necessidade. Era na minha cara que crepusculava melancólica, era sob meus pés que endurecia na urgência do salto, nos meus ouvidos que sussurrava sambas vitais, era o seu cheiro que me despertava. Gratidão é o selo da nossa história.

Tenho, todavia, um pedido a fazer, e peço em nome do amor compartilhado: Guarda cuidadosa o pedaço de mim fincado ainda na tua terra, encarnado nos que me deste a conhecer, cuja ternura torna todos os tropeços novas oportunidades, cujo abraço traduz o calor de pertencer.
- Elis Barbosa

3 comentários:

  1. Olá Elis,

    que bom saber que você está escrevendo no trema literatura.Esse teu texto aí está ótimo. Adoro auto-ficcionalização, acho que não saberia escrever de outra forma. E você dá vida à cidade, transforma o cenário em personagens. Acho isso ótimo!

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  2. "Never knowing who or what you are until you`re living with the unfamiliar". Eu adoro esse versinho de uma música do October Project, que ficou tocando na rádio-cabeça enquanto lia seu texto. O estranhamento das coisas familiares quando a elas se volta após tanta vivência. Este processo de desconhecer-nos, reconhecer-nos. Conhecer-nos!

    Abraços de sol de Arraial d'Ajuda.

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  3. As vezes a gente se decepciona, pois não consegue enxergar o que há dentro. No meu caso, eu me supreendi. Espero que você também...

    Te entendo.
    Me entendes.

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)