quarta-feira, 13 de abril de 2011

Dignidade


 Este texto foi postado no site Trema Literatura sob o título "Madura", na coluna quinzenal de Elis Barbosa.

No grande mercado, abrigo dos víveres e morteres que recheiam a geladeira aberta por compulsão quando é difícil tocar pensamentos fugidios, estava, na sessão do pão-nosso, entre os integrais, que a metáfora tinha de ser completa, uma esfinge de mulher erigida por prováveis sessenta anos. A moça, cujo olhar fora capturado pela encarnação do hipotético, tinha a alma anêmica do que a velha transpirava: dignidade. Suspirando gulosa, imobilizada, imagina que deveria passar a ter em casa vitrines expondo o que, de tão caro, não é possível etiquetar.

    O gesto com que examinava os pacotes de pão era como se soubesse do seu lugar no mundo, de quantas vezes mais teria de comer, caminhar, adormecer, chorar, conter, sustentar o mundo se fosse preciso, já o tinha feito antes. Sabia das trilhas secretas dos caminhos que a moça apenas adentrara. Tinha os cabelos prateados presos no alto da cabeça num penteado delicado e feminino, os olhos orientais não se apertavam, espelhos que eram de certezas nascidas dela mesma. A boca, cercada pelas marcas emocionadas do que chamamos tempo, guardavam palavras acenando. Era bonita, e estava pintada. Ora, se a dignidade não haveria de sair à rua sem se por bela, ela moça já devia saber.

    A estatura era bondosamente baixa, acessível, nas mãos de unhas cor de rosa carregava anéis, o esconderijo de segredos mortais que levaria consigo até não mais poder, de dramas ordinários da parte das dores particulares, de receitas de chás mágicos, de pedras protetoras. As flores, estampadas no pano leve que cobria o corpo esbelto tinham já notado que eram observadas, piscavam para a moça, adivinhando que se tratava de necessitada.

    Estar no mercado, a moça que era só, escolhendo encher carrinho, era figura de quem volta de longe, e pretende o recolhimento curativo. Era figura de quem ia consultar o silêncio sobre o que aconteceu, resignada em rever as contas que tinha a prestar consigo, a casa cobrando a indulgência dos últimos meses. A confusão de proporções ainda desconhecidas tinha de ser já organizada, havia cacos de amor pelo chão, despedidas penduradas na porta do quarto, mágoas úmidas em cima da cama, desaforos empilhados na pia da cozinha, vazio ocupando a geladeira.
 
    De modo que, especialmente depois do telefonema que a acordara, teve uma fome horrível amargando sua falta de apetite. Resolveu ir ao mercado, encher a geladeira, aumentar o acolhimento de seu agora precário eu. Tudo é ruim e nada presta, até se ver diante daquela figura eleita. Descobrindo de quê era a fome que tinha.

    A necessidade do olhar da moça cutuca a distinta senhora. O sorriso que se seguiu ao encontro dos olhos foi de uma ternura que ignorava motivos, mas sabia consolar. Confortou alimentando, religou os pontos dos sentidos, equilibrou o peso das lágrimas, dignificou enfim todo o esforço feito até ali.

- Elis Barbosa

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