quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Desajuste



Levanta seca, acorda amarga, não tem café, e sem café não há dia que comece. Lisa (adjetivo), sai à rua, o dia cumprimenta num sorriso claro demais para a noite mal dormida, sonhos apreensivos, debochados, povoados de conhecidos repudiados, estranhos agoniados, lugares apertados, uma enjoança só. A barriga dói de uma fome esquisita. Determinados acontecimentos deveriam ser permitidos com atestado de sentido, e tão somente mediante explicação.

Homens diversos olham encarando, um ou dois dizem gracinhas, a raiva tem de ser contida, mais que o choro. Lembra então que não se penteou. Nota a ausência de crianças na rua, queria pelo menos uma que a distraísse do menino esquisito do sonho angustiado.

Paga o café, a voz não sai na hora do agradecimento obrigatório à caixa da padaria. Olha de viés, a impressão é de que será pulverizada qualquer pessoa que olhe nos olhos. Náusea. A cara parece de cera, o corpo todo estranho, os pensamentos embirrados. Pensar na seqüência do dia trás imagens de fuga feroz. Precisa perder cinco quilos, os de sempre que hoje parecem dobrados.

Pisa numa pedra, o caminhão que passa buzina tão alto que podia ter soltado os gritos presos na garganta. Mal diz a todos, dançam bem na sua frente as iniqüidades do mundo e a idéia é de que são todas merecidas. Afinal não traçamos nós os nossos destinos, não somos os responsáveis absolutos por tudo o que nos sobrevém? Maldita ética protestante. Amaldiçoa, sabendo que todos os buracos nesse sentido são mais embaixo.

Agora me diga aí, pra que tanta informação? Pra que tanta consideração de variáveis infinitas. O telefone toca, oferecem serviços que visam otimizar sua comunicação, aumentar sua conexão com o mundo. Honestamente! O dia hoje estava bom pra se pastar, pensou em sugerir à forçada mocinha do serviço de telefonia.

Mal sabia a pobre que, se pudesse, entraria numa bolha onde os sentidos pudessem descansar, onde não tivesse pensamentos, nem bons nem maus, nem nada. A ordem era desconectar-se.

Os animais, por óbvio, gozavam de boa disposição e tinham ímpetos interativos. O outro humano residente logo acordaria e a interação seria inevitável. Socorro! Apaguem essa luz, me deixem sumir.

Elis Barbosa

2 comentários:

  1. Amiga querida, só posso dizer que, desde que teu rio mudou de curso, o leito das palavras se aprofundou para a passagem caudalosa de imagens que nos levam as margens de arrasto. Gosto cada vez mais de te ler e te saber pelas palavras.

    Um grande beijo saudoso desta Alemanha tão cheia de alemães :-)

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  2. Aqui, encontrei mergulho e profundidade.

    Encantada.
    =)

    Beijo

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Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)