quarta-feira, 14 de julho de 2010

Ladainha


Espreguiçou-se hoje sobre o dia uma melancolia que resolveu não levantar e por isso o sol nosso de (quase) todo dia, para não atrapalhar, resolveu guardar sua luz de espantar nostalgias e criar contrastes, resolveu folgar a plenitude. Logo ficou esse cinza jogado pra lá e pra cá pelo vento que venta no ritmo de um passear. O desenho desta manhã ficou parecido com o de tarde.

Hoje é dia de me ocupar dos afazeres domésticos, dos detritos do lar, restos de comida, louças por lavar, roupas batendo-se na máquina que demora uma eternidade para ajudar. Quarta-feira em que até a modernidade está reflexiva e toma um tempo diferente do que costuma para agilizar a vida, para acelerar o dia.

É uma agonia fina engrossando o ar, uma insatisfação parecida com dor de barriga, amolação distante, mas constante, acontecendo umas pontadas aqui e ali, sem previsão de passar. Precisando me limpar um pouco, escrevo, recorrendo ao caminho conhecido, mas que hoje está aborrecido, porque não consigo me livrar dessa coisa de rimar em texto que é prosa.

Será que perdi a mão?! Tudo saindo com cara de coisa requentada, uma ladainha enjoada, essa rima que não me larga!

Redescobri a poesia nos últimos tempos e essa reaproximação tem enchido meus sonhos de palavras, e eu precisando dormir, descansar, desconectar dessa realidade sozinha de quem não pára de pensar. Isso assim desse jeito me cansa, mas estou em casa, aos outros é que incomoda com mais vontade e esse defeito ainda não descobri como concertar. A fluidez do cotidiano fica atrapalhada com o estorvo que pode ser a constância da palavra surgida rápida, precisa, pontual.

Vira fardo o tipo da fala, cansa o constante externar de uma intensidade cuja lógica (essa tara por racionalizar!) funciona sempre pra mais, desconsiderando limites ou medidas entre os muros da intimidade possível. Ouço a voz dos anciãos desfolhando alfarrábios antiqüíssimos que discursam sobre o valor da temperança, vejo Comte medindo, calculando, chegando a fórmulas conceituais que nos levarão ao progresso ordenado de uma modernidade funcional, eu conheço essa lição tão bem, já há tanto tempo proclamei minha independência, adotei o escândalo de assumir meu eu, tal qualzinho ele é, de conduzir-me pelo mundo do meu jeito inclusive sendo mulher.

Pesa muito sobre mim isso das medidas, apesar de não ser nenhuma anarquista, sigo as regras absolutamente fundamentais ao bom viver, mas do meu jeito. Cansa muito isso do constante explicar, de ter sempre de justificar, se desculpar, se adaptar. Circulo pela casa querida, espelho bagunçado de mim, e a desordem do escritório se arruma de modo a me irritar expondo uma fita métrica com seus pontinhos inventados. Essa conspiração metafórica fazendo humor às minhas custas é de matar!

Pelo visto hoje não vai ser mesmo dia de passar, está mais com cara de castigo, de cantinho para pensar. Pelo visto o ciclo vai é recomeçar.
- Elis Barbosa

2 comentários:

  1. A coisa vai além do rimar. E observe: eu não disse "o problema vai além...", porque não há. Não é defeito*, como chamou. A questão você mesma já exibiu; é que começou a concertar. Tem ouvido mais música do que o normal, ou mais alta, ou diferente enquanto escreve? Ou será mesmo só a poesia? Seu texto está mais melódico e ritmado, isso está gritante, mas nem de longe é ruim, aliás, é o contrário. Sei que a poesia por si só já é capaz dessa influência. Enquanto lia, ouvia perfeitamente você declamar. Seu texto está com voz alta acoplada abdicando do microfone, mas sequer chega perto de soar screemo como uma leva inteira aí que me dá nos nervos. Se todo mundo que trata com a melancolia o fizesse com essa mesma elegância, um monte de bandas da segunda metade dessa década viveria no ostracismo.

    E sua dualidade prosa/poesia está equilibrada. Se você disser "mas não é isso que eu quero fazer", aí tudo bem, nem discuto e ainda dou força. =]

    *Sofro do mesmo defeito, mas em relação à música. Minha cabeça não para de calcular combinações de notas, experimentar beats quebrados, traçar linhas melódicas, compor arranjos num caótico piloto-automático enquanto as pessoas que vivem comigo me perguntam coisas simples como "você ligou a bomba para puxar água?" e eu concordo sem nem ter prestado atenção só porque meu inconsciente determina que a criação é mais importante. E nem sempre é.

    ResponderExcluir
  2. Vini, eu sei, eu sei... a criacão é uma verdadeira tentacão, acho que foi a curiosidade criativa que nos fez pecar, que foi a responsável pela origem de tudo que damos a pensar! :O)

    Bem, a poesia anda mesmo brincando comigo sem parar. Não sei se é isso que quero fazer, mas vou decidindo com vagar, pensando bem pra não errar. :O)

    Mais uma vez respiro aliviada de ter seu parecer sobre meu escrivinhar.

    Beijos,
    Elis

    ResponderExcluir

Troca comigo, meu texto pela sua impressão dele ;O)