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domingo, 21 de agosto de 2011

Bobinha

A primeira vida foi passada numa clausura terna de interiores sólidos. As manhãs tediosas eram contentes com sua dinâmica iluminada por um sol rigorosamente branco que nem havia lápis de cor possível para pintá-lo fidedignamente nos cantos das folhas dos cadernos, que por sua vez cumpriam a rotina de quebrar a continuidade de um ano inteiro quando se renovavam deliciosamente perfumados. Perguntava-se, de prazer, sem querer resposta: de onde será que vem esse cheiro de caderno novo? Todo início de ano letivo tinha o nariz enfiado nos cadernos e livros encantados, cujo perfume foi o primeiro dos alteradores de consciência que experimentaria ao longo do comprido caminho.

Depois vinham as tardes, igualmente repetidas através das semanas infinitas, sempre tendo como pano de fundo o bambuzal muito verde, muito alto, muito cabeludo. Os coqueiros triangulados ficavam por ali também, em outra sala, fazendo moldura para o céu que era a rede de então, a conectar os que ali pousavam os olhos. Tinha o riacho escuro, muito fino correndo num lugar sombrio, onde o sol achava apertado entrar inteiro e só o fazia em lascas. As amoreiras pesadas de frutinhas beliscadas pelos pássaros chamavam sempre para a brincadeira de colorir a cara das crianças que nunca resistiam à acidez doce daquele encarnado doído das amoras miúdas.

Ai, que rotina era aquela vida, os intervalos bem marcados por suspiros tediosos, de quem só continuava a vivê-la por curiosidade, pensava assim, com certo desdém daquela existência enfadonhamente possível, com distrações prazerosas e pesarosas. Havia tremores de coração, pequenas paixões como a hora do lanche da tarde nas casas das primas, que vinham anunciadas pelo cheiro de café fresco e mate. Elas sim eram felizes e não sabiam, caso estivessem em sua casa só viriam frutas, bananas amassadas com aveia e mel, vitaminas de abacate, maçãs, mamões, um festival natureba-hiponga orgulhosamente proporcionado pela mãe zelosa, que só aumentava-lhe a sensação de continuidade repetida com seu ritual deliciosamente guloso de bolos e biscoitos feitos por ela mesma toda sexta-feira. Tanta saúde chegava dar insônia.

Dormia-se sempre à mesma hora, acordava-se com carinhos, mimos e achocolatados, uma mesmice extensa e azul. Descobriu cedo os livros, a eterna fuga para todos os lugares, dentro de uma solidão confiável, dentro das histórias dos outros era possível viajar sem os olhos perscrutadores dos pais atentos. Teve o passaporte carimbado até as folhas terem de ser renovadas, e não parou nunca. Queria tanto a aventura de viver as coisas que só viriam depois que crescesse, mas tanto, que sentia ser melhor ignorar a vida de agora, limitando-se a reunir forças para o que viria quando tudo valesse à pena, quando fosse grande. Aconteceu que num dia de chuva forte, ouvindo a mãe cantar a música da chuva (muitas coisas tinham suas músicas naquela casa), repensou sua decisão e resolveu, por via das dúvidas, olhar os dias com atenção, passando a assumi-los intensamente. Sorte sua, haveria de recorrer a esses mesmos dias para matar a sede de sentido advinda da incoerência do mundo grande.

Cresceu em torno dos olhos curiosos por tudo que pudesse ter sentido maior ou diferente, desdobramentos inusitados, chances avessas. Conheceu pessoas sortidas, passou por lugares inesquecíveis, amou mais de uma vez a mesma pessoa, depois, quando acreditava não ter sobrado nada, amou outras pessoas. Mudou muitas vezes tantas coisas, que cansou e desejou não mudar mais, pediu para os dias passarem amenos, repetidos, sussurrantes, quem sabe a antiga serenidade das horas marcadas, da dieta programada, um pouco das antigas certezas, não lhe fizesse bem. Lembrou-se de quando queria tudo, olhou em volta e descobriu grata, feliz, que antes de qualquer lição havia aprendido a que precisaria depois para continuar, a de ir devagar, a de fazer rotina, a, tranqüila, recorrer às repetições delicadas dos dias olhados pelos outros como comuns, guardando o descanso morno nascido do conforto da rotina.

- Elis Barbosa

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Delirante


Dentre tantos e todos os sabores que estar aqui inclui, consolam minha perturbada não matéria (a qual me nego nomear, cansada da repetição dos nomes de sempre) duas vistas de janelas, a do possível regresso, e aquela donde não se vê muito, posto que pertencendo ao imprevisível os movimentos ali são rápidos, guardam surpresas.

Vê como a perturbação é real? Isso de a saciedade não passar de brevidades, e cultivar a fome (sem qualificá-la para que não se limite) ser considerada mesmo uma arte necessária à resignificação de si, e para tanto do entorno. Será salutar essa atenção ao que sequer está ali?

Sem querer resposta sugiro propositalmente despretensiosa que desdobrar-se e passear por horizontes ausentes é absolutamente usual e até razoável, uma vez que nada. Não há razão nenhuma para se cultivar imaginação, dar-se ao prazer da brincadeira de faz de conta é só conseqüência das estórias contadas cheias de encantamento fazendo brilhar os olhos da criança, imprimindo no que se carrega ao eterno o desejo pelo sonho.

Renego solene e teimosa abandonar o presente, o passado, e o futuro à naturalidade de serem tão somente passagens. Ficam todos comigo o tempo todo em imagens sempre redecoradas pela fantasia, são estórias reinventadas ao gosto da hora, à necessidade da saudade, ao desejo do que projeto no que seja o por vir. Ardil perigoso é a imaginação, especialmente se temperada à atenção constante do que pode estar por detrás da neblina risonha que se compraz na traquinagem do esconde-esconde.

Ardil perigoso imaginar, sonhar, mais perigosa ainda é a coragem que, de mãos dadas à excitação de sentir mais e de novo, confere ímpetos de liberdade aos que, então, se lançam a viajar. Ora, mas se estar aqui já não é em si tarefa de grandes riscos?! De modo que se não há saída (nem eu a desejo) resta a integridade na conduta comprometida em ser inteira.

Sem as travas de segurança, seguindo o cheiro do vento, que é viajante por natureza, anseio nervosamente pelos insondáveis caminhos e inevitáveis acontecimentos rompedores de previsões feitas pelo velho maltrapilho e fedorento que é o Tédio. Todavia, não se enganem, ele nem é velho de verdade, é criança sem estórias a fim de provocar malcriação certa por parte dos que lhe desprezam.

Anseio pelo que ignoro para enfim sabê-lo, e sabendo-o poder colorir fantasias, espalhar no chão imagens e dispô-las de modo que a cada vez configurem invenções diferentes, inesgotáveis estórias, fontes lindas de chocolate, chás, cafés, e água do tipo fresca e insipidamente doce como são as águas boas. Lugares que alimentem aquelas fomes que nunca passam, servindo igualmente ao propósito de cenário dos encontros que já foram, mas por pertencerem à eternidade se repetem ali, dos que estão sendo nesse exato momento e enchem os olhos de muitas coisas, e dos que serão sem nunca, jamais suspeitarmos disso.

Agora preciso ir, meus animais me esperam para uma mesa redonda sobre novas rotas para os passeios vespertinos.

- Elis Barbosa

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Regurgito

Voltei ao antigo cenário, separado de mim por eras intransponíveis de três meses. Pus os pés e todos os sentidos a serviço da investigação de mim, novamente envolta pelos vaporosos rumores da cidade grandíssima.

Pois não me abstive, espalmadas as mãos contra a janela do ônibus, toquei as imagens que se sucediam ao movimento ininterrupto do circo fantástico. Era o Centro. Abafado pelo calor da peleja dos que transitam entre empurrões, atropelos, encontrões. Sujo de todas as intenções que por ali desfilam confusas, ostentando muros marcados por imagens que só cabem lá. Luminoso, todo arrumado para receber a noite e suas ambigüidades. Vi, sentado sobre a Candelária, o Desejo travestido de santo esperando rever Maria ao soarem as sagradas badaladas das seis.
Ele não me viu, mas sentindo minha presença sorriu maroto.

Sabe bem de quem já esteve lá, de quem já pertenceu àquela Babilônia despudorada e gozou dos banquetes cordialmente oferecidos a Epicuro.

Sorri de volta, andarilha que fui de suas ruas incertas, dos becos surpresa, das paisagens-cartão-postal. Fui invadida por uma euforia carinhosa, por uma paixão generosa de quem partiu e não quer mais voltar a despeito de o amor ainda estar lá, agora livre.

Foi no tumulto daquela cidade que aprendi a ser, só. As gárgulas que moram lá foram os olheiros indiferentes da busca pelo que não sabia carecer. Os edifícios altíssimos, com suas vistas para o mar sustentaram o quebrantado corpo tantas vezes perdido, esconderam com suas sombras infinitas guerras épicas entre as mãos que buscavam os seios antes dos olhos e as que traçavam, indignadas, fronteiras intransponíveis. Há que se conhecer os caminhos para alcançar destino.

As águas salgadas daquela cidade limparam de mim o amargo do pranto pelas ilusões rasgadas diante do meu desespero, aprendi que água de mar clareia por dentro.

O anonimato das ruas entupidas de quereres guardou alegrias, descobertas, amores, sofrimentos, despedidas, guardou meu vagar insistente com delicadeza discreta. Lá é permitido chorar a céu aberto sem intervenções, mas só aos fortes sua beleza ensina que volta por cima é canto de necessidade. Era na minha cara que crepusculava melancólica, era sob meus pés que endurecia na urgência do salto, nos meus ouvidos que sussurrava sambas vitais, era o seu cheiro que me despertava. Gratidão é o selo da nossa história.

Tenho, todavia, um pedido a fazer, e peço em nome do amor compartilhado: Guarda cuidadosa o pedaço de mim fincado ainda na tua terra, encarnado nos que me deste a conhecer, cuja ternura torna todos os tropeços novas oportunidades, cujo abraço traduz o calor de pertencer.
- Elis Barbosa

domingo, 5 de julho de 2009

Indefinivel

Time is a misterious thing… transforma tudo sem que percebamos o quê ou o quanto, por mais atentos que estejamos. Sempre alerta, sempre alerta é o lema dos escoteiros, e o meu também. Contudo, dou conta, de tempos em tempos, que olhar em volta não basta para reconhecer a mim e a tudo que me cerca como meu mesmo! Os ciclos parecem concluir-se antes que possa dar conta deles...

A janela da minha sala dá para a rua, entrega muitas vezes minha atenção à vida dos que por aqui passam deixando sempre um pouco de si pelas calçadas íngremes que levam à Santa (Teresa). Falam, incautos, de suas próprias vidas como se não houvesse quem os ouvisse, falam das vidas dos que conhecem, desafiam-se, odeiam-se, amam-se, como se por alguma razão essa rua oferecesse o abrigo da invisibilidade! Talvez o faça, talvez por isso mesmo eu a tenha escolhido para aqui ser acolhida com o tanto e o tudo que minha estreita percepção é capaz de captar. Passo aqui, de frente para esta janela, a maior parte dos domingos que me sobrevêm, ruminando o que não passa despercebido.

Os domingos, confesso, têm se tornado dos meus dias preferidos, a despeito de toda sua nostalgia característica. E isso do tempo, aqui na janela dos domingos, é tão claro, tão marcado, que posso quase passar seu ritmo e melodia para o caderno de música, como quando dos ditados musicais na casa da professora de piano. Vejo o dia passar todo, enquanto atualizo minhas leituras periódicas, fingindo ao tempo que passa minha indiferença mal disfarçada... vejo o dia adormecer preguiçoso, despedindo-se lentamente, como quem não quer ir! Com o canto dos olhos, vejo da minha janela sua tentativa inútil e letárgica de seduzir a noite trajando o pôr-do-sol mais exuberante, enquanto a escuridão fria e delicada expulsa-o sem remorso.

São incontáveis domingos, e histórias que não se pode narrar, só se pode viver, vivem-nas quem as conta, quem as ouve e quem as protagoniza, passam pela minha janela pululando obviedades, repetindo-se do começo ao fim, dando-se ao luxo de apresentar diversos atores a cada vez que se repete, sempre com os mesmo papeis... as mesmas inquietações, as mesmas surpreendentes alegrias, os mesmo encontros inusitados, as mesmas frases de efeito, sempre tão impactantes aos seus protagonistas!

Há vezes em que até eu, espectadora atenta dessa repetição inédita de todo dia, quero ver novamente aquele mesmo final feliz... O tempo é um elemento curioso, o mais paradoxal que conheço, é absoluto, mas relativo; ameniza dores, mas aumenta saudades; envelhece o corpo, mas engrossa a coragem; marca o rosto, mas apaga mágoas; passa, mas nem sempre... há ainda o que fica suspenso no tempo e no espaço, indefinidamente, a ser vivido.

- Elis Barbosa

terça-feira, 2 de junho de 2009

Encontro Casual



Quantas e quantas vezes virá o passado nos assaltar logo ao raiar do dia? Isso quando não o faz durante o que deveria ser sono reparador, trazendo à baila nos sonhos, imagens que de tão antigas valsam em sépia....

Hum, hum, hum... pigarreia ele, pois pigarreia sempre que nervoso, punho cerrado próximo à boca, igualzinho quando... reproduzindo – nosso destino necessário esse o da reprodução!? Temendo, tremendo. E se a voz não soasse como devia? E se sequer soasse? Suava, muito. Respirava apertado, tentando com a razão dissuadir o impulso, o desejo inconteste de falar-lhe. Fazia já tanto tempo, para quê expor-se assim desavisado a olhar e ser olhado? E o olhar seria nos olhos, pois não conhecia ela outra forma de falar que não fosse olhando nos olhos, ele bem o sabia!

Para quê?

Abriu os olhos e capturou-o a imagem dela, que num movimento distraído do mundo, tal qual sempre havia sido, coçava a cocha esquerda, levava a mão ao brinco e depois ao queixo, divagando imersa naqueles pensamentos que só corriam na cabeça dela, de mais ninguém! Tão cheia de manias, tão vazia de hábitos, vivia variando, sorriu...

Avariando, isso sim!!! Mas que tanto tem de mudar os móveis dessa casa pra lá, pra cá?! É bom, lindo! Senão a gente esquece que pode mudar, e depois acho que essa arrumação deixou mais arejado, não achou amor? Toda vez você diz a mesma coisa, toda vez você acha que ficou melhor dessa que da última! Quem não muda é você!

Aquela acusação final, aplicada a tantas e quantas coisas, trazia sempre ao rosto moreno, miúdo, um ar de rebeldia sabida de pessoa doce. Sabe como?

Sacudiu de leve a cabeça, como quem espana pensamentos, mas o máximo que pôde foi embaralhá-los... podia falar com ela, como podia não falar. Não falando ficaria esmagado sob a acusação grave de covardia, falando não sabia! Como assim não vai falar com ela, lindo? Não vou, eu disse que depois daquilo não falava mais com ela?! Pois então, não falo e ponto final! Mas querido, isso já faz tanto tempo, e ela faz aniversário semana que vem, e vocês são tão amigos?! Não somos mais. Homem, deeeeixa de covardia e assume logo que o amor, a amizade e a saudade não ligam para promessas feitas assim de pirraça!

Afinal, eram velhos conhecidos, íntimos até, tão íntimos... milhares de imagens invadiram suas retinas de dentro para fora, como num arrastão, e começava a sentir os cheiros... sacudiu mais uma vez a cabeça, respirou fundo e olhou para ela pretendendo indiferença, de si para si mesmo, já que ela estava de costas. Sentiu vontade de sorrir, mas neste revés os olhos é que se manifestavam umedecendo, ao timbre da voz amorosa... Pode virar, pode fingir que não está nem aí, eu não ligo, te amo mesmo assim, tá?

Melhor não falar... sabia que raciocinava debilmente.

Meu Deus, é você mesmo?! O sorriso mais lindo, os olhos mais brilhantes de apertar lágrimas, e os braços abertos sacudiram-no de uma só vez, era um assalto! Ela o descobrira depois mas o invadira primeiro, como sempre... Olá! Sua alma querendo desencarnar naquele cumprimento sussurrado. Tentou mais uma vez... Olá!

- Elis Barbosa

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Sonho



Era uma casa grande e velha, de arquitetura palaciana, feito as que ainda se deixam ver incrustadas nas encostas de Santa Teresa, relíquias silenciosas que olhadas de longe dão a impressão de tempo que não passou... Era um sonho, e à casa misturava-se uma árvore imensa, cujos galhos estendiam-se por todos os cômodos que não vi, pois não me foi dada a alternativa de adentrá-la.


O sonho era meu, a casa era minha, mas não era permitido apropriar-me dela, apenas ao quintal tinha acesso irrestrito. Logo numa tarde tão nublada, o vento achando de sacudir violentamente tudo que encontrava pelo caminho, ficara desabrigada, desamparada, desprovida da proteção do concreto. Todavia, o coração pulava em folia desordenada pois que no horizonte surgia um ser, que de tão humano que era, foi o companheiro eleito para, de mãos dadas, acompanhá-la nas primeiras incursões ao mundo real. Eis que de tão plena a aventura foram imiscuindo-se um no outro de tal maneira, e teve o amor tal magnitude, que mesmo depois do fim absoluto e necessário guardaram ainda o sonho como único ponto de encontro possível.


Então, mais uma vez encontravam-se!


Seguia o vento a revoltar as folhas das árvores, os cabelos de ambos, a poeira de tudo que houve e de tudo que há, carregando-a para um futuro que ainda não foi e que ninguém pode saber como será! Não importa, já fazia tanto tempo que não se encontravam, bastava já o bálsamo que era saber que lhe sabiam, o alívio do abraço apertado que levava embora toda a solidão, a renovação da cumplicidade ao olharem-se mais uma vez nos olhos, bastava já poder arrefecer um tanto a aridez que traz a distância, abrandar a sede de reconhecer e ser reconhecida naquele lugar que havia mesmo sido o lugar de todo dia!


Conversamos longamente sobre todas as coisas, sentados num banco de praça branco, aliás, tudo que não era verde ou cinza, ou preto, era branco. Até o amarelo dos gatos, sempre tão vivo apareceu pálido, e eles tinham pulgas, muitas e muitas pulgas surgiam da terra no quintal e ficou decidido que uma solução deveria ser encontrada rapidamente para tal questão, questão de ordem sanitária! Os gatos deveriam ser limpos, o quintal deveria ser limpo, eu deveria ser limpa... decidido isso, passamos a nos olhar novamente.


Sorrimos os sorrisos mais marotos, de quem sabia da arte que fazia! Beijamo-nos longamente e aprofundamos ainda mais nossos laços de eternidade, pois logo seria chegada a hora da despedida, era certo. Tentei entrar na casa, como se lá pudéssemos nos esconder de acordar, todavia, o caminho para chegar até a porta alongava-se tanto mais quanto me esforçava eu, trazendo o amado pela mão, em percorrê-lo todo.


Dói sempre a despedida, pela sua natureza mesma de afastar, mas nesses encontros doía especialmente, pois no mundo dos sonhos a verdade se apresenta clara, pungente, desavergonhada de si... dessa vez expôs-se no lençol que se solta do varal, sacudido freneticamente pelo vento: soltar-se-iam no mundo novamente, daqui a pouco, e talvez nunca mais se vissem, este pode ser o último encontro, nada é garantido, nada é certeza.


Acordei doída, sentindo os olhos pesados de lágrimas que não derramei, o rosto tenso pelos sorrisos que não dei, a alma ressentindo-se do assalto sofrido na madrugada, tantos arroubos e eu nem estava acordada!!! E as palavras? Onde estão as palavras que trocamos? Jazem em algum lugar do qual não saberei nada, jamais, pois foram por aquele vento levadas!

- Elis Barbosa

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Pessoa humana



“Existe a novidade, uma coisa que acontece de novo, e existe a coisa completamente nova, que estréia, que acontece pela primeira vez com a pessoa”... A voz acolhedora que vinha de dentro do aparelho cinza e feio amenizava o arrepio de estranhamento que lhe recobria o corpo. Era mesmo um momento novo, tudo estranho ao que sempre havia sido, tudo como devia ser se considerados os seus esforços, mas quem haveria de prever que seria assim?

Desabalada a chuva lavadeira caia lá fora, queixo na mão direita recobrindo-lhe a boca pequena e bem desenhada, andava pelo apartamento também pequeno pondo-se a tentar a alquimia de pensar e sentir ao mesmo tempo, buscando... Sim, queria mesmo ter sabido como era aquilo, e por pura gulodice de saber. Seria pecado essa gula? Seria pecado esse salivar constante ante as possibilidades não só de ler ou ouvir, mas também de (corpo presente) sentir?

Pois sempre quisera ser só, sem saber bem como seria... e pela primeira vez experimentava uma solidão curiosa... não era mais mulher.

Não era mais mulher, repetia sorrindo. Era isso! Era isso que talvez viesse buscando, uma humanidade mais plena, destituída do ímpeto de fazer valer o fato de ter nascido mulher! Será?

Havia uma magia especial naqueles dias, estava mais bela, mais serena, mais delicada, mais sensível, mais atenta, mais amorosa, e tudo isso agora sem ser mulher, pois adquirira uma certa invisibilidade para os homens. Não havia ninguém, como se uma névoa rosa-alaranjada recobrisse seu corpo moreno, disfarçasse como um véu seu rosto harmonioso, transformando o que se via em nada, deixando à mostra apenas a energia que ali pulsava. Some o sorriso, aparece o sentido.

De tudo isso sorria, misteriosa de si mesma, com o olhar enviesado que às vezes tinha aqueles olhos amendoados e muito pretos, tão femininos...

- Elis Barbosa

terça-feira, 24 de março de 2009

Possibilidades literarias


Diante dos seus olhos um espetáculo espontâneo apresentava-se obsceno. Tamanha exclusividade lhe atava um nó na garganta, sensação de desigualdade espalhada sobre o chão, deslumbramento, desejo doendo na segunda costela que ela nem sabia que estava lá... tudo tão repentino e inevitável!

Parecia haver, contudo, uma memória encantada, distante, que denunciava não ser aquela sua primeira vez! Mas era, era... seu coração não mentia e seus olhos puros, infantis, jamais tocaram aquilo antes... não tinha certeza, não tinha ainda tempo de vida para tais abstrações demoníacas... que coisa mais linda, misteriosa, mais linda do mundo todo!!!

Flagrava-a o sol da tarde, suave, muito acompanhado de uma brisa amorosa que emaranhava os cabelos e fazia farfalhar tão lindamente o objeto mágico que contemplava de todos os sentidos!

Será que ela pode ser minha? Eu queria tanto que fosse minha, só minha! As mãozinhas apertando uma a outra, postou-as sobre a barriguinha, fazendo como quem quer muito uma coisa que tinha bem muito que ser sua... Eu cuidava de você, te dava a minha casinha de boneca para morar e, e, e... deixava você voar pelo quarto, mas só pelo quarto (dedinho em riste), porque você é muito pequenininha e pode se machucar e se perder! Ah... levou as mãos à boca. Mas eu não ia deixar! Caminhou devagar, esticou-se a não mais poder e voou..........................................................................................................................................

A borboleta azul turquesa voou para um perto longe, como fazem as borboletas, e de repente o vazio deu-lhe um beliscão tão forte, sufocou. Correu em direção à ela e seu pequeno corpo vibrava raiva, medo e desejo. Vem ser minha, vem. Eu cuido de você! Agora para bem longe, mas ainda perto o suficiente para ser vista, a borboleta voou. Era muito alto, voou exibida! Tinha uma vontade grande de pisar na borboleta, tão linda e não quer ser minha... o vazio sufocou e a distância cegou-lhe os olhos com uma tempestade de lágrimas!

Era sua primeira incursão de todas que a vida ainda traria com a passagem de suas estações...


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Há vinte e quatro horas a doçura de tua aparição fez com que a distância passasse a existir.

Pois tem as mãos firmes, e os olhos doces, com cílios muito, muito compridos... Sua tez morena de açúcar mascavo e o sorriso que lhe escapa quando me escapam os modos torna tudo tão proposital! Ser noite, ser sexta, ser verão, sermos nós, ser ali...

Fazia já algum tempo que não havia surpresas e por isso mesmo sinceramente despretensiosa achei que não havia risco, e por isso mesmo achei de chegar junto, só para ter certeza de que estava, mais uma vez, certa... ora que prazer, não estava!

O desejo surge antes da invenção, o sentimento antes das palavras e fico desconcertada ante sua firmeza sensual, viril, e me toma e cola tua boca na minha e beija-a como eu mesma queria ser beijada. As palavras então, que sempre me amparam, resolvem sumir para ver como fica a minha cara sem elas, mas não falo de mais nada porque agora só beijo e sussurro coisas que nem eu mesma sei o que são!

É vinte e quatro o número das horas que separam o ainda desconhecido você, de mim, mas como o tempo não se deixa contar nas voltas que faz o sangue ao correr louco pelo corpo vibrando de desejo não o sinto tão curto, o sinto longo e fico sem dormir para vê-lo passar. Conto e reconto por teima da memória, por pura fidelidade, o número de vezes em que quis tocar e neguei, em que te quis cheirar e neguei, que quis que fosse o que acabou sendo... ligou-se o rec e de repente, sem razão, ao som da sua voz em harmoniosa entrega com teu corpo exortou-me: “olha para mim!”

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Enquanto ouço, bem à porta da minha sala o chiado dos seus “ésisx” – e resta-me apenas esses resíduos da voz metálica e doce que tantas e tantas vezes fez transbordar minha alma de acolhimento, de alegria, pelo simples fato de poder estar ali e ser alegremente acolhida – sinto o perfume que exala de ti e vem cá pra dentro, como um deboche sorrindo de canto de boca do irremediável, de estarmos tão perto e tão, definitivamente longe, de hoje ser sexta-feira, último dia útil de todos os dias de semana, dia em que... inútil dizer!

E gritou ao bom samaritano: “Um abraço, por caridade!” Abraços? Estes não tenho, mas se quiser ofereço algum concreto. Tenho apenas alimento para o corpo, a alma extraviou-se de tanto ficar de castigo... sinto muito! O outro, corado de saúde e robusto de corpo chora. Morria à mingua necessitando de calor, de humanidade, de reconhecimento de um igual, de poder olhar no olho de um outro onde de alguma forma pudesse ser refletido, pudesse contemplar sua própria humanidade a lhe sorrir.

Seus olhos pequenos e fugidios inquietam-se ao ouvir minha voz, ao perceber minha presença... e a despeito de toda a altura és pequeno, um pequenino... e talvez por isso ainda resvale em ti um bocado da minha ternura. Não é possível, não é permitido na lei do amor que se odeie o mesmo a quem se prometeu o mundo, a quem se prometeu um filho. Portanto, longe de te odiar, ainda te amo de alguma forma.

As possibilidades literárias desse texto são minhas, todas pertencem única e exclusivamente a quem faz correr os dedos frenéticos pelos teclados na busca incansável de transbordar o que não cabe dentro... contudo são possibilidades apenas literárias... ainda assim não sai de mim a inconformidade de não poder ter de ti a cumplicidade fraterna de quem por tantos dias entregou-se comigo à inconsciência do sono reparador, para ser despertado pelo sol dos olhos amorosos de quem te dizia “bom dia!”.


- Elis Barbosa

quinta-feira, 5 de março de 2009

Brinca, brinca...



Num ritmo seu, no qual raramente tenho a oportunidade real de interferir, o movimento vai seguindo a trilha necessária. Os dias repletos de recados, sins, nãos e muitos, muitos talvez. Sempre a brincadeira da adivinhação e eu péssima com sinais. Pistas a cada esquina e só me resta recolhe-las para, quem sabe um dia, conseguir montar o quebra-cabeça, já que agora tudo bóia numa tigela imensa, cheia até a boca , de sopa de letrinhas.

É no que dá infância entre livros, revistas e histórias, mas brincava bem muito de passa anel e ninguém nunca acertava quando era a minha vez de soltar a jóia na mão escolhida. Sabia fazer mistério, mas ainda não sei desvenda-los. E pareço sabe o que? A cabra-cega, de olhos bem cobertos tateando, tentando encontrar.

Contam, contam indefinidamente, e era tão fácil encontrar esconderijos então. Os lugares me cabiam, o corpo obedecia às manobras mais tortas, o coração batendo forte quando quase descoberta, e a corrida desesperada, se enfim descoberta, na tentativa de isentar-me da tarefa de ser a próxima a procurar. Afinal, já disse, fazer os mistérios sempre foi infinitamente mais fácil que desvenda-los.

Caí, como eu caí, as marcas no corpo denunciam sempre nossas aventuras, esta testemunha inquieta, saliente, fazendo rastro dos lugares onde estivemos, cheio ainda das frutas que comíamos sem lavar (amoras, amoras), impregnado das gargalhadas e excitações das brincadeiras que brincávamos.

Muda tão pouco de tudo isso, ao menos assim me parece quando atento para dentro, muda tudo quase nada. E me pego, mais uma vez, bem quietinha, respiração contida, de coração na mão, só esperando o momento, às cegas, tateando cuidadosamente, com a jóia na mão, sem fazer a menor idéia de em que mãos ela irá cair, tudo pulsando aqui e agora, aquele sangue misturado com alegria e medo.

1, 2, 3, 4, 5....

- Elis Barbosa

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Encantadas


Encantada, lia sem descolar do rosto o sorriso condescendente de quem sabe exatamente do que trata o outro naquelas linhas traçadas com capricho, o pensamento ainda garranchado cheio de sentimentos tumultuados. Era o texto como um quadro que todos desenhavam, mais hora menos hora, pintado com a descrição das primeiras descobertas, contendo as confusões de quem acaba de chegar, as desilusões primárias, os questionamentos do óbvio sempre presente, mas nunca dantes visto.

Trilhava ela o caminho proposto pela outra, parágrafo à parágrafo, sem respirar, sabendo que qualquer reação que tivesse seria tomada por sinal de algo, quando nada havia a assinalar a não ser o que já se desenhava ali. Então, o que achou? Piscava, os olhinhos pequenos e despertos. Achava de dar-lhe um abraço forte de irmã para, quem sabe, passar para ela toda a força resignada de quem já gastou aquelas trilhas e se perdeu e andou em círculos e caiu e levantou e enfim seguiu adiante! A força renova-se como a fênix... mas ela ainda não sabia.

Achei bom, está ótimo! Tem certeza? Tenho, está bem escrito, claro e honesto. Isso sim, bem honesto mesmo, abri meu coração! E dizia assim com o punho cerrado sobre o peito. Sorriram, um sorriso sereno e amoroso e um tenso, de lábios apertados, respectivamente.

Você acha que eu devo mandar? Ora, mas não foi escrito justamente para ser lido? Sim. Então, já nem é mais seu querida, já é do outro. Você acha? Era como assistir aos primeiros passos... eram os primeiros passos! Acho, acho que deve mandar, como se estivesse a liberar um passarinho da gaiola.

Com essa imagem assim colocada os olhos dela marejaram, baixou a cabeça ruiva, cheia de cachos grossos e caraminholas. Dobrava o papel com gestos de mágico que faz desaparecer. Você já mandou cartas assim? Deus, foram tantas escritas e tão poucas enviadas, foram tão espremidas e extraviadas, algumas nunca respondidas, foram simplesmente ignoradas...Sim, já mandei cartas assim, claro, há vezes em que coisas ficam melhor colocadas no papel, sabe?

É, acho que sim. Mas não sei, mas vou mandar assim mesmo. Sorriu.

Um não saber infinito, uma ausência de fronteiras, de limites, uma constelação de sentimentos que experimentados com paixão rendiam era num outro Halley, rasgando seu céu, explodindo afinal em mil impressões e nenhuma certeza.

- Elis Barbosa

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Interior - esquentando




Foi no dia de ontem, abateu-se sobre mim, como carinho de malícia, uma febre brejeira.

Não era febre terçã, nem amarela, não era febre de gripe nem de amor mal curado, era uma febre brejeira, isso que era!

Vírus, foi vírus que entrou pelos ouvidos, e as músicas que não paravam de tocar iam fazendo tudo ferver dentro de mim, amolecendo as crostas do tempo que cismou em fazer parecer remoto aquele passado.
Passado, só se for no calendário, remoto nem para ser de escrita bonita serve, porque nunca vão deixar de ser presença aqueles dias que aconteceram no seu tempo natural de sóis e luas, com as estações divididas entra a roça e a rua, entre a praça e o pasto, entre os caminhos de paralelepípedo e os de terra batida – pela sol quente, pela chuva densa, pela neblina gelada da matina, pela gente insistente que por ali pisava – entre o corpo, que se fazia absolutamente necessário, e a alma que se descomplicava toda naquela imensidão de céu nas estrelas.

O mundo de então era pequeno no que tinha de construído, mas infinito no que era ancestral, no que era da terra, no que era daquela Terra. Tirava-se ainda o sustento da natureza, diretamente às vezes. Plantava-se, colhia-se. As galinhas servidas à mesa eram cria dali mesmo (para desespero dos que lhes tinham afeto), pescava-se nos rios que serviam de esconderijo para os amores nascidos bem ali dentro d'água (como tudo que é vivo!) em brincadeiras de mergulhar até o fundo.
As árvores eram frondosas e místicas, algumas davam frutos, algumas davam histórias. Havia mangueiras que serviam frutos suculentos, chupados com gulodice entre gargalhadas amarelas, mas só podia quem limpasse a cara com as costas da mão! Outras igualmente gostosas davam a goiaba que podia ser amarela ou branca, só descobria quem se aventurava. Havia árvores que não davam era mais nada depois que o moço escreveu a canivete o nome da amada e jurou vingança por terem internado a pobre num convento que ele nunca mais achou, ou ainda, depois de ter sido regada com o sangue da moça que se mata quando acredita, enganada, que seu amado foi-se embora com outra de quem ninguém sabia. Havia árvores que guardavam as almas de quem por ali se havia perdido em alguma noite de tormenta!
(e passávamos de mãos dadas, olhando só para o chão, rezando bem de com força, sentindo arrepios tremendos se lhe balançavam as folhas...)

E acalentava nossos corpos em seu regaço fresco e fértil, à sombra do ócio que alimentava os anseios e as fantasias, que tornavam mais belas as ocasiões que faziam os ladrões de beijos e... corações!

- Elis Barbosa

sábado, 31 de janeiro de 2009

Fragmentos


Como tudo era ainda muito recente, havia fragmentos espalhados para todos os lados, alguns possíveis de se recolher só, posto que pertenciam a um apenas, mas outros, outros pedaços não. Depois de tanta construção a desconstrução deixava soltos fragmentos que nunca mais haveriam de encontrar encaixe em lugar nenhum do mundo inteiro. Fragmentos de dois, que não era possível recolher só, e agora, nem de dois, não havia mais a unidade no duo amoroso e o que restava era mesmo aquele monte de fragmentos, mais nada.

Fragmentos perdidos, separados de seu lugar de pertencimento.

E a despeito da poeira ainda estar no ar, tornando a respiração difícil, surge pela mão do outro fragmentos que precisavam ser devolvidos imediatamente tal a delicadeza de sua essência, faziam parte da intimidade do inteiro agora esfacelado. Quando tudo é fragmento devolver os cheiros, o olhar, as imagens captadas por aquele amor e nenhum outro, não é possível, mas é tentado porque todas as composições tomam a forma dos cristais sobre os quais a bailarina de Montenegro mantém a postura impecável, apesar dos pesados pesares abatendo todos os dias aqueles que caminham sobre esta realidade.

Teorias não faltam, abarrotam as mentes e estantes do mundo, a respeito dos assuntos mais diversos, e pouco mais ou nada muda quanto a universalidade da dor do amor que se quebra. Comungamos todos da ausência de prumo e rumo quando este que nasce com os dias contados (sete dias ou setenta anos, tanto faz), e sabemos disso, começa a cair para se quebrar e morrer.

Sentada aqui no meio dessa bagunça, pondera se não seria mais confortável, talvez, que as chamas consumassem tudo, caso a natureza nossa e do amor fossem projetadas para combustão natural e instantânea à proclamação do fim. Restariam as cinzas, tão mais fáceis de o vento levar, de se limpar. Ou ainda se fosse afogado o amor, na água tudo seria devidamente diluído e sequer haveria de ter limpeza, recomendável seria, tão somente, a exposição ao sol. Mas não, nada disso, o amor toma formas concretas de flores (as de plástico nunca morrem), palavras escritas, livros trocados, discos de música, filmes, fotografias, roupas, velas, e incontáveis coisas, objetos carregados de significados, marcados por comporem o que nos vai por dentro com a assinatura indelével do outro.

A solidão junto desses objetos-essência é cruel, amassa entre os dedos da razão os  corações que não foram ao paraíso em sonho e agora precisam acordar. Declarado o fim do amor, mesmo que ele ainda esteja lá, as coisas adquirem corte de caco pontiagudo, fatiando até memórias.

Sentada no meio de pedaços dela mesma, olhava a estante de livros, amava os livros, eram eles, dos objetos todos, os que mais lhe falavam ao coração. Os que possuía eram como relíquias e por isso ocupavam em sua nova casa de mulher-sozinha-recém-separada lugar de destaque. Contudo, alguns lhe doíam, como farpa enfiada na unha, um latejar renitente, havia neles o veneno da dedicatória, das palavras escritas, das quais não é possível livrar-se, a não ser que... não, logo, logo tudo seria superado e os livros estariam ainda inteiros.

Só tem que dor miúda doendo dentro de dor grande, e que não vai embora, tira o juízo da pessoa. Ela não sabia, voltava da primeira viagem, não tinha ainda no tenro coração os calos das dores do amor, era uma iniciante, ignorava.

Foi quando numa noite dessas, com o coração mole de vinho, ela tropeçou num caco bem afiado na estante e, sem mais poder suportar a presença do outro em si, culpando as dedicatórias, começou a ver-se livre delas arrancando-as uma a uma dos livros, que ia espalhando pelo chão. Teve a impressão etílica e delirante de que finalmente havia arrancado a presença do que já não estava há muito por perto. Largou-se na cama e ao recender do próprio corpo, soube que enganava-se, que ele estava ali. Chorou e dormiu exausta.

Muito depois, entendeu tudo e hoje me disse que aceita e acomoda, da melhor maneira possível, os livros que recebe, grata por eles, com ou sem dedicatória. Grata, pelo amor que se deram ambos a viver tão leais, à sua moda, uma gratidão chorosa e dolorida, mas ainda assim toda generosa.

São os fragmentos que compõem o mosaico de seu painel amoroso.

- Elis Barbosa

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Para o ano nascer feliz...


Dizem que a boca fala do que está cheio o coração… e por que não dizer: também os olhos vêem através do véu tecido pelas emoções que abarrotam o peito do indivíduo?

Era uma vasta multidão a que me rodeava... e dizer vasta de multidão não é tentativa de fazer graça ou de bancar a estilosa, é a redundância necessária para dar a idéia exata do mar de gente fazendo margem comigo.

Então:

Era uma vasta multidão a que me rodeava... fazia margem comigo um sem número de pessoas de todos os tipos, vindas dos mais diferentes cantos, cada uma buscando seu lugar ao calçadão, a areia havia sido tomada desde muito antes daquelas horas. O objetivo comum era comemorar a virada do ano de 2008 para o ano de 2009.

Uma passagem, uma passagem apenas, por onde queriam “passar” dois milhões de pessoas ao mesmo tempo, tudo aqui e agora... todas as preces, todas as expectativas, todas as curas, todas as concretizações, todos os sonhos, tudo sendo vibrado num coro silencioso de olhos arregalados, bocas levemente apertadas, mãos retesadas e um grito surdo que os fogos estourando desordenadamente em meio a uma fumaça muito espessa tentavam abafar.

Pode até ser traição, mas o que meus olhos viram nos olhos dos que me cercavam foi um medo que tinha o mesmo tamanho do desejo, uma solidão na exata mesma proporção do amor que se tinha a oferecer, e ausência de esperança. Foram poucos os abraços distribuídos, foram poucos os gritos de euforia, foram muitos corações apertados pela mão que tenta esganar, a todo custo, a esperança de dias menos conturbados.

Se possível fosse, providenciaria uma mãe, ou coisa que o valha no sentido do acolhimento, para cada um dos que ali estavam (eu incluindo). Tive uma dó bem muito grande e uma vontade de poder garantir que tudo vai ficar bem...inclusive para as crianças de Gaza que ao contrário dos que ali estavam não tem qualquer previsão de quando os estouros que lhes arrepiam vão parar!

- Elis Barbosa

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Véspera de Natal


A véspera de natal é quando se começa a comemorar o natal. É para a noite do dia 24 de dezembros que as pessoas se põem a preparar coisas e mais coisas... para a casa ficar como nas fotos, para as pessoas ficarem como nas fotos, como se as fotos fossem mesmo passíveis de reprodução na realidade... justo aquelas fotos que são produzidas tão somente para fazer com que todos tentem imita-las!

Enfim, chega ao fim o dia 25, arrastado, de ressaca.... As pessoas deixam os lugares e se põem a voltar para a aridez de suas vidas indivisíveis, indo-se embora (mais uma vez), deixando para traz a casa que reflete o estado dos corações, uma bagunça! Tudo fora do lugar, remexido, usado, restos e sobras com o que não se sabe o que fazer: jogar fora ou reciclar? Esbofetear ou perdoar? Acolher ou ignorar?

Essa véspera de natal teve de curioso a presença da verdade à mesa onde ceamos. Não daquela verdade que declara, discute, ou debate, mas daquela verdade calada que cada um de nós amadureceu ao longo vida e que parece bem ter desabrochado ao longo do ano que passou. È curioso perceber o processo lento de uma família tão jovem. Assim: havia a verdade de cada um e o desejo visceral de um contato amoroso entre todos, só tem que isso ainda não é possível, afinal, só tivemos tempo de começar o caminho das verdades individuais, não dá ainda para dividi-las.

Não partimos o pão, mas bebemos o vinho e nos olhamos muito. Ainda não nos tocamos, mas estamos começando a nos reconhecer. Será para isso que serve o natal?

- Elis Barbosa

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Intervalo


Desfruto agora de um momento raríssimo de se viver nesses últimos tempos... intervalo! Estou em um intervalo!!! Engraçada essa sensação de lugar para descrever um tempo, estou em um intervalo. Para aqueles que já esqueceram, intervalo é um tempo (acrescentem outras definições para intervalo os que puderem!) que se situa entre uma coisa que aconteceu e outra que está para acontecer.

Desde a modernidade, intervalos são cada vez mais raros uma vez que, existindo um tempo entre uma coisa que terminou e outra que vai começar, costuma-se fazer aquelas coisas para as quais não sobra tempo algum. Ocorre que, nesse intervalo em especial, me encontro sem nada para fazer... então volto-me ao caro exercício de observar e transcrever o que minhas lentes captam, para continuar treinando a caligrafia...

Eis que, de repente, me deparo com uma coisa incrível, que a maioria de nós já viu mas me pergunto se reparamos...um balé, estava acontecendo bem diante dos meus olhos, o balé das canetas rodopiantes!!! As pessoas rodavam canetas dos mais vários tipos por entre os dedos e não sei se era o movimento hipnotizante das canetas ou o desconforto de um momento onde o ser se vê obrigado a, das duas uma, estar consigo e consigo mesmo ou estar com o próximo, que nesse caso está à distância de uma cadeira, mas o fato é que o exercício da dança das canetas parece ter congelado os olhares... e, surgiu então um outro intervalo, o intervalo entre a caneta que roda freneticamente e o fazer algo com o breve momento em que não se tem absolutamente nada prescrito, pré-estabelecido ou determinado para fazer.... mas o que? Deus o que faremos se ninguém nos disser o que fazer?

Alguns tentaram, eu vi, posso servir de testemunha, tentaram estabelecer contato com outros através de tímidos desvios dos olhos das canetas para o próximo, mas este já tinha sua própria caneta e voltávamos à estaca zero!

Há que se levar em consideração que era uma sala de aula (e não, salas de aula como aquela não intentam propiciar qualquer tipo de interação), há que se considerar que já era noite e que a maior parte dos indivíduos que ocupavam aquela sala tinham atrás de si um dia inteiro, cada qual com a sua porção de horas, mas ainda assim admito que me arrepiou o frio da distância entre as pessoas.... Engraçado, uma distância (enorme) dentro de um intervalo (tão curto)... isso me remete a algum conhecimento que devem ter plantado dentro de mim mas que não tenho a impressão de me pertencer... isso tem alguma coisa que ver com matemática? Estou começando a sentir o alien se mexendo dentro da minha cabeça... cruzes!

E agora? Agora é o número dos relógios nervosos nos pulsos cerrados, aliás, alguém sabe me responder por que no mundo cerramos os pulsos para ver as horas?!

Agora, agora seremos todos salvos! Não criemos pânico... o professor acaba de entrar e dá até para ouvir o uníssono dos suspiros de alivio... o intervalo acabou!!! Está restabelecida a ordem e finalmente voltaremos a fazer...


-Elis Barbosa

domingo, 20 de maio de 2007

Vazio...


Pedi o empréstimo uma caneta que, tanto para mim quanto para uma menina, de mais ou menos uns seis anos, parece ser o maior dos tesouros.

Ocupamos as duas um mesmo tempo, a despeito da diferença de idade. Encontramo-nos obrigadas a assistir uma aula absolutamente insossa e tediosa. A coitadinha acompanha a mãe, que por sua vez tenta arduamente compreender um conteúdo que se autodestruirá dentro de 5 minutos, mas ela, também coitada, não sabe disso.

Eu, traidora de mim, acompanho o fluxo da necessidade imposta pela grade curricular, e aproveito esse tempo para imprimir impressões e treinar um pouquinho a caligrafia.

A menina olha para mim em desespero, se sacode na cadeira e aperta o braço da mãe. Não posso ajuda-la e como não tenho para quem ou para o que olhar, olho de volta para ela com um sorriso amarelo e, como o professor não consegue parar de falar de números, amostras e quantificações ela se joga no chão, literalmente, do jeitinho que eu mesma queria muito fazer.

Logo ganha um colo de consolação, começa a descabelar sua mãe, projetando no outro o que tinha em si - tão humana aquela criança! - e consegue diminuir, em muito, a duração do consolo, é posta de lado.

Começa, então a escrever, como o fazem todos os degredados, e nossa cumplicidade então está formada! O tédio que nos une é incomensurável e tentamos não chorar enquanto o quadro-negro vai se enchendo de fórmulas sem sentindo.

A minha idéia desta disciplina era que fosse qualitativa, mas além de ser exposta sem qualquer qualidade, pretende quantificar sentimentos e construções subjetivas... loucura né?

Hoje é uma segunda-feira cansativa e tediosa... minha histeria está controlada pela fome e pela tristeza que tem enchido meu saco desde ontem à tarde quando, levada pela mão por um cenário familiar, tive um bad trip... Páginas da vida, laços de família, a vida como ela é, mas estou tranqüila por que acredito que meu caso não chegará à linha direta...

-Elis Barbosa