Essa imagem é o elo entre tudo que eu te disse e você ouviu. |
Histéreo
Abro
um livro para conhecê-lo. Eis a desculpa mais ordinária para se abrir
um livro. Tive por ele curiosidade e invadiria suas entranhas, vazia de
nobreza, egoísta na intenção de saber o que lhe ia por dentro, mais
nada. Olharia nos olhos mais um dos tantos habitantes dessa casa cheia
de uma solidão movimentada pelas historias dos outros imiscuídas à
minha. Queria saber o que lhe ia por dentro. Agora não quero mais nada.
Como
uma bomba detonada de propósito, cada virada de página é um beliscão
fino, doído no agudo, retorcedor de entranhas. O futuro deitou no chão
com medo de ser atingido por todas as perguntas sem respostas que
guardei, desde quando meu tempo era o da manhã, por tantos motivos.
Nenhum legítimo o suficiente para fazer desaparecer a voz indagadora,
insistente, empacada. E tudo nesse deflagrador de flagelos vem trançado
numa poesia tão absolutamente doce, de uma potência toda delicada,
macia, substancial. Fiquei miúda, imensamente miúda. A voz do livro
deitou sobre as coisas mais essenciais deste imaginário devoto à beleza,
à nobreza, à honra, às obrigações para com tudo que lhe envolve, devoto
ao ideal primeiro, a saber, é dever tornar o mundo melhor. Deitou sua
musicalidade contundente, e sacudiu seu cobertor quente sobre a
indignidade egoísta de se poder tanta coisa, mas ainda assim tentar tão
pouco, que sucumbi num pranto magoado.
A
beleza da forma com que tudo é dito passa uma mão pelo meu rosto
soluçante, e com a outra me abraça de modo a cativar minha lealdade
irrestrita. Eu quero fazer também. Quero escrever ou ler, ou cozinhar,
ou qualquer coisa que um dia faça de meu reflexo eco a estremecer no
outro a voz que não pára de perguntar. Todo mundo tem uma voz dessa para
si.
Soluço
sufocado, eu no peito do livro, desconsolada, concluo pela minha
inutilidade, minha ineficácia, assumo meu espírito de uma pobreza
inefável, minha voz não faz eco, não tem peso, nem sentido. Minha
existência mesma não vai nem vem, fica boiando nessa continuidade
esquisita que nem parece continuidade. Ao que é que darei seqüência?
Voluntariamente nego-me à reprodução de minha própria espécie, por
desgosto e impossibilidade e confusão, a trindade que desorienta o
momento histórico. Disseram que disseram: os homens modernos seriam “amantes
de caminhos sem metas e de metas sem caminhos" e eu só faço repetir,
desalentada na confirmação do óbvio sempre a me anteceder. Não acredito
na modernidade, nem em sua pós, não acredito em nada que
não tenha propósito, e dói no fundo dos olhos ser assim tão reta, tão
linear, tão obtusa, tão limitada.
Será
que fragmentada sente-se menos angústia? Nada há nessa casa que ecoe o
que digo, menos ainda que me negue. Não tem criança aqui pedindo o
elementar, não tem ninguém precisando ou querendo nem pingo de nada. Tem
os bichos amados que já eram nascidos quando chegaram, nada aqui nasceu
de mim ou me é continuidade. Não há obra, não há certezas, não há
motivos, não há sequer o talento luminoso que a
poucos transforma em necessidade para os que o têm.
E
tenho vontade de parar de escrever, de parar de estar aqui e mudar-me
para qualquer lugar onde os nomes das coisas correspondam aos seus
significados. Sou tão absolutamente egoísta de minha infelicidade que
digo isso fazendo exatamente o contrário, e por um momento me integro
aos que me cercam nesse nonsense coletivo que se expande horrivelmente
pelas ondas invisíveis da coisa virtual.
A
resposta do livro? O que tens é na verdade uma solidão imensuravelmente
humana, perene nessa busca pelo que adotou como utopia, mas à qual não
pode pertencer, posto que a dita existe só aos que se permitem o direito
de sonhar. Acalma-te, amanhã mando que te procure a dúvida, e confusa
crerás uma vez mais que talvez não seja bem assim.
- Elis Barbosa
"(..)na intenção de saber o que lhe ia por dentro, mais nada
ResponderExcluire o que há por dentro do seu próprio livro? Aquele que foi escrito meio que desapercebido e que traz consigo uma imensa bagagem que apesar de enorme ainda assim não lhe pereceu convincente.Talvez o óbvio esteja descrito em cada palavra escrita neste livro indecifrável.Indecifrável pois é difícil acreditar no que é simples e claro.O esforço excessivo por aquilo que acreditamos ser o único meio não nos permite enxergar outras opções a não ser não escrever mais,não ler mais,não fazer mais...
ou você abre sua mente e releia este livro buscando o significado simples e claro das palavras ou você rasga de vez..afinal bibliotecas não faltam
Esses anônimos... me matam de curiosidade, chega minhas vistas ficam embaçadas para o conteúdo do comentário, me seca a garganta a curiosidade pelo nome exato do remetente, eu e essa tara com nomes!
ResponderExcluirSaiba, no entretanto dos poréns, que estás sendo matéria de profunda reflexão por parte desta louca que vos fala.
Beijos
me matam de curiosidade, chega minhas vistas ficam embaçadas para o conteúdo do comentário
ResponderExcluirsó pra esclarecer o que nossa "anônima" quis dizer: "Não vi o texto pela ótica de Freire, mas sim pela ótica de Freud."
ResponderExcluirDepois desse comentário suas vistas desembaçaram e a curiosidade já parou de te matar?
;)
beijos
Agora sim! ADOREI!
ResponderExcluirSinto-me assim toda vez que escuto Jimmy Page tocar, Jim Morrison cantar; toda vez que degusto uma composição do Pink Floyd; cada vez que leio Kafka, Salinger ou Capote. E fico pensando: putz, minha guitarra não é tão diferente da do Jimmy Page, é praticamente a mesma coisa, salvo alguns caprichos de especialista. No entanto, se ele pegasse a minha guitarra, certamente faria o mesmo estrago que faz com a dele! Exatamente no mesmo espaço onde sou limitado ou me esgoto com relativa frequência, ele veria possibilidades por mim inimagináveis.
ResponderExcluirTecnicamente, o aparelho fonador de Morrison também não devia ser muito diferente do meu.
De forma semelhante, o mesmo pedaço de papel e a mesma caneta que uso poderiam produzir uma obra-prima pelas mãos de um dos escritores mencionados.
O que me salva é a cara de pau. Se não fosse por ela, eu sequer teria começado. É muita audácia minha me aventurar nos mesmos campos que esses caras. Sorte a minha que não tenho pudorzinho em relação a isso. Daí, pulo de cabeça no nonsense coletivo e vamo que vamo.
Assim como foi também em estéreo que ouvimos, você daí e eu de cá, esse grito do sentido, querendo se fazer ouvir.
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