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O caminho era longo, luminoso no campo, na cidade. O mar era possível e os dias certamente se apresentavam assim para a fruição de toda a extensão da vida. Entenda-se vida aqui como a coisa em si, os dias sucedendo, o corpo respondendo saudável, limpo, certo, muscular, posto que pelos vinte anos quase tudo vibra é no corpo mesmo, e por mais profundo que se pense há tão somente a possibilidade do vir a ser, o percurso a explorar.
As cortinas estavam bem próximas de se abrir sem que se tratasse mais de ensaio, agora era de verdade, agora se libertaria de todas as amarras e ranços que vendavam seus olhos para um universo ainda desconhecido. Assim intuía. Ninguém mais saberia de seus percursos, caso não fosse seu desejo fazer sabê-los, seria finalmente dona de si, desbravando corajosamente a cidade imensa. Não tinha medo, na mochila carregava tão somente certezas, ia leve de jeans e camiseta. Mulher em botão ajeitava os óculos e seguia sempre em frente.
A ignorância é a primeira mãe da gente, é tão menina quanto somos nas estréias, e por isso não conta dos perigos nas curvas, dos acidentes de percurso, dos obstáculos imensos, ela também não os conhece, embala-nos alegre e amorosamente até a porta das coisas e despede-se confiante justamente por não saber.
Aquecida pela própria natureza, num abril que antecipava maio, necessariamente, entra em cena a heroína tragicômica (como convém aos anos juvenis) do que estava em cartaz, construindo o roteiro da história que contaria mais tarde, rica de tudo que achava fácil na teoria, cheia de ternura.
Dez anos passados aprendeu que por força do tamanho do mundo é necessária alguma cautela, portanto nunca mais se despediu da ignorância definitivamente, melhor deixá-la ficar, junto ao tempo, ambos parte do elenco fixo. O tempo, esse que passa a conhecido depois de não se ter sabido esperar, exibe muito garboso de si seus desdobramentos multidimensionais. Aprendeu que ter coragem é admirável, mas a prudência pode fazer economias incríveis; que desbravar é um compromisso às vezes subliminar, sem o qual não se cresce; que é a entrega irrestrita o seu caminho para a compreensão das coisas, e que essa deve ser praticada ainda muito para se considerar aprendida; aprendeu que nem todo mundo morre literalmente de amor, mas que a ingenuidade de se acreditar que a passagem do tempo restituíra o que se foi com a história é coisa de amador.
Refaz as trilhas conhecidas para não perder o mapa de si, tem vício por rever os caminhos, sofre de um apego terrível à memória, posto que não pode carregar consigo o que embala a saudade, acaso pudesse a danada viveria a ressonar suavemente e deixaria de lhe causar insônia. Reedita histórias, sempre mais lindas, à medida em que suas fronteiras se ampliam, que novas paisagens surgem e o olhar suaviza de tanto se surpreender. Volta, é bobagem omitir, a visitar amados que já não fazem parte deste Ato, mas que ama ainda com um carinho indizível por serem lindos, humanos, e por a terem amado, guardando em seus alforjes a pedra do desejo pela eternidade.
Blimundamente me alimento do pão do passado para melhorar as vistas do presente e não ter fome de previsões futuras.
- Elis Barbosa
Quebrei sete bolas de cristal na semana passada.
ResponderExcluirTudo porque queria antecipar o futuro. Como é difícil viajar nestes carros invisíveis né não?
A tal agulha.
Me disseram que ela foi inventada e estará no mercado livre a disposição. Mas, ia dar tanto trabalho, que decidi usar minhas mãos.
Um dia consigo ficar cheia de luz.
E dar lugar só as coisas claras.
Te abraço com carinho
Amiga, isso de apropriar-nos das coisas exigir entrega são saberes de quem se despertenceu, enriquecido de si. Os alforjes cheios de pão para marcar o caminho, de modo que voltar sobre os próprios passos para reinventar a memória é cevar-se de sentido.
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